Diagnosticada aos três anos de idade, Ana Lúcia Cunha era muito nova para recordar com clareza como foi ser uma paciente com poliomielite, em 1970. Mas sua perna direita perdeu a mobilidade e não a deixou esquecer as consequências. Mesmo aprendendo a lidar com a condição, a servidora pública tem sido defensora da vacinação, para que outros não passem pelo que ela passou. Conhecida como “paralisia infantil” ou simplesmente “pólio”, a poliomielite é transmitida por vírus e afeta, principalmente, crianças com menos de cinco anos de idade.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada 200 infecções leva a uma paralisia irreversível, geralmente das pernas. Devido à vacinação massiva, desde 1994 o país recebeu e mantém o certificado de erradicação da doença, emitido pela OMS.
No entanto, a baixa cobertura vacinal registrada nos últimos anos traz o alerta de risco de ressurgimento da doença. Este ano, no início de outubro, houve uma suspeita de contágio no Pará, mas, após investigação das autoridades de saúde, foi descartada essa hipótese. Desse modo, o país continua livre da pólio.
Apenas cerca de 70% de crianças de 6 meses a 4 anos foram imunizadas no país, durante a Campanha Nacional de Vacinação contra a poliomielite, até 26 de outubro de 2022 - na Amazônia, a taxa é de 63%. A meta do Ministério da Saúde é atingir 95% do público-alvo. Para Ana Lúcia, cada cidadão tem um papel importante na orientação aos responsáveis e às próprias crianças para estimular a vacinação. Hoje com 54 anos, ela é servidora pública e mãe de dois filhos. “Quando os colegas dos meus filhos comentavam sobre eu andar de muleta, eu explicava que fiquei assim porque não tomei a ‘gotinha’ e perguntava: ‘você já tomou?’”, revela, referindo-se à vacina poliomielite oral (VOP), que é a segunda dose de imunização contra poliomielite administrada no esquema vacinal brasileiro.
O acesso à vacinação no Brasil foi potencializado a partir de 1973, com a formulação do Programa Nacional de Imunizações (PNI). Três anos antes, no entanto, a realidade ainda era diferente, em especial na Amazônia. Ana nasceu e morava no município de Xapuri, interior do Acre, onde seus pais eram seringueiros, e lembra que “na época, não se tinha a vacinação tão acessível e a gente nem tinha ouvido falar de poliomielite”. Seu primeiro sintoma foi febre intensa e incessante. Ela ficou um mês internada no hospital na capital do estado, Rio Branco, e sua mãe conta que, nesse período, a vacinação chegou até sua comunidade e sua irmã mais nova conseguiu receber o imunizante. “Por uma diferença de poucos dias não fui vacinada também”, comenta.
Poliomielite é totalmente evitável com vacinas
Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), a poliomielite pode se espalhar rapidamente entre comunidades com cobertura vacinal insuficiente: quando a taxa cai abaixo de 80% em uma região ou país, há risco alto ou muito alto de sofrer um surto. Embora não tenha cura, é uma doença totalmente evitável com vacinas.
No Brasil, a taxa de cobertura vacinal vem caindo desde 2015. E isso se reflete na Amazônia de forma drástica. A pior taxa do país referente à poliomielite fica no Acre, estado de Aná Lúcia, com apenas 38,68% do público-alvo imunizado até 26 de outubro de 2022.
Sequelas podem surgir mais de uma década pós-contágio
Nas últimas décadas, pesquisadores descobriram a síndrome pós-pólio (SPP), uma desordem do sistema nervoso que atinge as pessoas somente mais de uma década depois de ter tido a doença. Os sintomas e o período em que atinge, e até mesmo se irá atingir, variam em cada caso, mas as principais queixas são dores musculares, fraqueza, cansaço excessivo e cãibras.
“Muitos ainda não conhecem a SPP. Tem pessoas que apresentam sintomas da pós-pólio e não sabem do que se trata, acham que é só o envelhecimento, então informamos e mostramos onde podem conseguir tratamento médico especializado”, esclarece Andrea Caselli, membro do conselho fiscal da Associação G-14 de Apoio aos Pacientes de Poliomielite e Pós-Pólio. Andrea também contraiu o vírus da poliomielite na infância, aos 10 meses de idade. "A gente morava naquele momento em Macapá (Amapá), em 1968. Não tinha nem energia 24h, nem mesmo nos postos de saúde, então não era tão fácil ter acesso à vacina. Mesmo os meus pais tendo uma condição de vida boa, minha mãe nunca tinha ouvido falar de poliomielite e meu pai não era muito propenso à vacinação", diz.
Sistema de Saúde brasileiro é referência mundial
Pelo Sistema Único de Saúde (SUS), é preconizada a disponibilização de mais de 20 vacinas que se deve tomar durante a vida. Todas oferecidas gratuitamente e que podem ser acompanhadas pela caderneta de vacinação, um documento que se recebe desde bebê e que registra quais imunizantes a pessoa já tomou, quando foi a administração da dose e qual a previsão das próximas vacinações de rotina.
“Em muitos locais do mundo, a vacinação é paga, como nos Estados Unidos. Apenas na campanha da covid-19, devido à pandemia, que foi um caso à parte, não foi pago”, ressalta a enfermeira Ilma Pastana, vice-reitora da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Segundo ela, esse é um dos motivos que fazem com que o SUS e o esquema de vacinação brasileiro sejam referência no mundo todo. “Além de conseguir uma grande capilaridade de vacinação, chegando a comunidades remotas, sempre gratuitamente, existe toda uma formação profissional ao redor e integração com a Academia, que trabalham em conjunto constantemente para aperfeiçoar esse sistema”, complementa.
Em comparação, em clínicas privadas no Brasil a vacina contra gripe custa, em média, R$ 150,00, a da HPV a partir de R$ 550,00 e, em alguns casos, como da covid-19, nem se encontra disponível fora do sistema público.
Baixa cobertura vacinal contribuiu para a volta do sarampo
Segundo o Ministério da Saúde, três dos cinco estados com menor taxa de população vacinada do Brasil estão na Amazônia. Atualmente, apenas cerca de 40% da população da região está em dia com as vacinas previstas pelo PNI. Há 10 anos, essa taxa era de 77,72% (dados de 2012 disponíveis no DataSus). “Se olharmos para trás, 10, 20 anos atrás, percebemos que conseguíamos vencer barreiras, mesmo na Amazônia, que é uma região de muitas particularidades, como as distâncias geográficas. O que mudou para chegarmos ao ponto que estamos hoje?”, indaga a médica Amanda Alecrim, representante da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) no Amazonas.
Em sua avaliação, um dos fatores para a queda da cobertura vacinal é o fato da geração de mães e pais mais jovens, na faixa de 20 a 30 anos, não ter crescido com o “medo” da “paralisia infantil” e, por isso, podem não perceber a seriedade da doença. “Mas é importante destacar que, mesmo quando a doença é erradicada, o vírus não é eliminado do planeta. Assim, mesmo que o Brasil tenha erradicado a 'pólio', quando baixamos nossa cobertura vacinal é como se abríssemos a porta de nossas casas para que o vírus, que paira ao redor, volte a nos atacar”, ilustra.
Foi o que aconteceu com o sarampo, considerado erradicado no Brasil em 2016. É uma doença que precisa manter a taxa de cobertura vacinal de 95% da população-alvo. No entanto, em 2017, a porcentagem foi de 84,9% na primeira dose e 71,5% na segunda, de acordo com o Ministério da Saúde. Um ano depois, em 2018, a doença voltou a preocupar o país, após dois surtos na Amazônia (nos estados de Roraima e Amazonas) e, a partir desse momento, o país vem continuando a registrar casos. De 2018 a agosto de 2022, mais de 39 mil casos foram registrados, em todo o país, sendo 15.574 na Amazônia.
Fake news e falta de campanha nacional contribuem para baixa cobertura
A médica Amanda Alecrim explica que o aumento da propagação de informações falsas, as chamadas Fake News, pela internet e aplicativos de mensagens, é um dos fatores já identificados que vêm contribuindo para as constantes quedas nos números de vacinação. “Temos hoje um movimento antivacina muito forte que confunde a população e dissemina informações falsas sobre a segurança das vacinas. O que orientamos, enquanto SBIm, é que sempre procurem checar essas informações com base em sites confiáveis, como da OPAS e do Ministério da Saúde”, acrescenta.
Além disso, cada município pode determinar seu próprio “Dia D”, ou seja, o dia em que se intensifica a vacinação dentro de uma campanha - ao contrário de um passado recente, quando o país inteiro padronizava em uma única data. “A falta de unidade da campanha pode confundir e ser um fator decisivo”, segundo a médica. Por conta das dificuldades de locomoção e distâncias de algumas comunidades, se alguém for ao centro urbano acreditando ser o dia certo da campanha e na verdade era outra data, “essa pessoa não volta no outro dia para se vacinar”, exemplifica.
Os horários de atendimento dos postos de saúde também precisam ser reavaliados. “A realidade atual é que tanto mães quanto pais trabalham fora de casa e os horários de funcionamento, geralmente de 8h às 17h, não condizem com essa rotina. É importante repensar essa estratégia e, em paralelo, os gestores das empresas precisam liberar os funcionários para levarem as crianças para se vacinar”.
Doenças como a meningite já preocupam em outras regiões
Dentre as vacinas disponíveis no SUS, estão os imunizantes contra hepatite, caxumba, rubéola e meningite, doenças que já assolaram no passado, mas no século XXI se tornaram menos comuns. Apesar disso, devido à baixa cobertura vacinal, vive-se nos últimos meses no país um surto de meningite. Dentre os sintomas, estão febre alta, mal-estar, vômitos, dor forte de cabeça e no pescoço e dificuldade para encostar o queixo no peito.
O surto tem se concentrado em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, mas já foi registrado aumento de casos também no Espírito Santo, Pernambuco, Bahia e Santa Catarina - estados onde a cobertura vacinal contra meningite está abaixo de 60%, considerando a vacinação Meningocócica C (inclusive o 1º reforço) . Na Amazônia, a taxa média está em 45,92%, com índices menores no Amapá (32,90%) e Roraima (35,93%). A vacinação é a melhor forma de prevenção e tem como público-alvo rotineiro crianças a partir dos 12 meses, com doses de reforço aos 5 e 11 anos.
Em reação ao surto recente, o Ministério da Saúde está disponibilizando também, temporariamente, um outro tipo de vacinação meningocócica, a ACWY, que possui uma proteção de mais variações da doença, em comparação à vacinação meningocócica C. Até junho de 2023, adolescentes de 11 a 14 anos que não foram vacinados contra a meningite na infância poderão receber o imunizante nas salas de vacinação do país.
A orientação geral no momento é que as famílias confirmem que todos tiveram essa imunização completa. Caso não, deve-se procurar o posto de saúde mais próximo para melhores encaminhamentos.
Adultos - Outro motivo de preocupação, de acordo com Alecrim, é a taxa de abandono entre os adultos. “Ou seja, pessoas que durante a infância tomaram todas as vacinas corretamente, mas ao chegar na fase adulta perdem este controle”, define. Na Amazônia, a taxa de abandono atual é de 25,49% (superior à média nacional, de 15,19%). “Nunca é tarde demais para atualizar sua caderneta vacinal. Se você tem dúvida se está faltando algum imunizante, dirija-se ao posto de saúde mais próximo com seu histórico de carteirinhas de vacinação que você será orientado corretamente”, orienta Amanda Alecrim.
Vacinação na Amazônia requer estratégias diferenciadas
Quando se trata de vacinação na Amazônia é necessário considerar ainda as distâncias geográficas entre comunidades de zonas rurais ou que estão em meio à floresta, conforme ressalta Virgílio Viana, superintendente-geral da Fundação Amazônia Sustentável (FAS).
A FAS coordena o programa “SUS na Floresta”, que executou um projeto piloto no ano passado, em parceria com o Governo do Amazonas, levando as vacinas de acordo com cada comunidade ribeirinha e indígena, e não por faixa etária ou grupos prioritários, como foi a estratégia adotada a nível nacional. O método foi pensado para melhor atender à população e economizar tempo e dinheiro. “Imagina ter que ir em cada residência, em cada comunidade, na longa extensão de um rio, para aplicar a vacina em uma faixa etária e depois ter que fazer todo o trajeto novamente para outra faixa etária”, exemplifica. “Foi uma experiência que deu muito certo e que agora sabemos que esse pode ser um caminho para ampliar a vacinação na região de outros imunizantes também”, complementa o superintendente.
Pesquisadores buscam novas vacinas contra a malária
Em paralelo ao esforço do sistema de saúde de imunizar a população com vacinas já existentes, a ciência atua no desenvolvimento de novos imunizantes. Diversas frentes no mundo vêm trabalhando em novas vacinas contra malária, uma doença infecciosa, febril, aguda e potencialmente grave que é adquirida após a picada de um mosquito transmissor do parasita Plasmodium.
Cerca de 99,9% da transmissão da malária no Brasil ocorre na Amazônia. Em 2021, foram registrados 1.742 surtos na região. O parasita tem espécies diferentes, mas a única vacina contra malária disponível no mercado, atualmente, protege contra a doença causada pelo protozoário Plasmodium Falciparum e é aplicada em alguns países da África que apresentam alto índice de transmissão da doença. Porém, no Brasil, essa vacina não está disponível, considerando que a maior ameaça no país é o Plasmodium Vivax, que representou 83% dos casos nacionais, em 2021.
Por isso, o Ministério da Saúde brasileiro tem concentrado as discussões acerca das vacinas da P. Vivax. Um exemplo dos esforços em andamento é a pesquisa da Universidade de São Paulo, que direciona esforços para produzir uma vacina das variantes dessa espécie. Os ensaios clínicos devem iniciar em 2023 e, se os resultados forem positivos e o imunizante entrar em circulação no futuro, deve ser uma medida de proteção mais efetiva para a Amazônia brasileira.
Prevenção de doenças tropicais
Segundo o Ministério da Saúde, fatores como elevada temperatura, muita chuva e alta presença de mosquitos fazem com que a Amazônia seja uma região considerada endêmica para enfermidades tropicais, como a própria malária e a febre amarela, esta última cuja vacinação também está disponível pelo SUS e desde abril de 2017 é necessário tomar apenas uma dose durante toda a vida. Apesar de o número de casos ser controlado, o alerta para a febre amarela é que cerca de 20% a 50% das pessoas que desenvolvem febre amarela grave podem morrer: na Amazônia, apenas dois casos foram confirmados em 2020, mas ambos levaram ao óbito. A imunização é crucial e a melhor forma de prevenção.
Já a dengue, apesar da maior incidência ser no Centro-Oeste, também apresenta muitas ocorrências na Amazônia, em especial no Tocantins, estado com a maior incidência em 2021: 640 casos para cada 100 mil habitantes (Goiás, que vem em seguida no ranking, teve 340,2 casos para cada 100 mil habitantes).
A vacina contra a dengue hoje somente é disponível na rede privada (custa por volta de R$ 300) e exige encaminhamento médico comprovando que o paciente já teve contato com o vírus. O Instituto Butantan vem desenvolvendo uma nova vacina que promoveria uma imunização mais universal e a expectativa é de que os estudos sejam concluídos em 2024. Como prevenção no momento, o Ministério orienta combater os focos de acúmulo de água, locais propícios para a criação do mosquito transmissor da doença.
Três dos cinco estados brasileiros com menor cobertura vacinal geral estão na Amazônia
Três dos cinco estados brasileiros com menor cobertura vacinal de poliomielite estão na Amazônia. Veja, abaixo, os percentuais