A Ferrovia Paraense, um projeto na Amazônia que há pelo menos seis anos vem avançando, tem a ambição de intensificar a economia ligada ao agronegócio e à mineração. O projeto ganhou fôlego este ano com o aceno de garantias de US$ 2 bilhões em investimentos necessários – o que faz com que setores produtivos na região já tracem perspectivas para que, em breve, ela possa ser retirada finalmente do papel. A ideia consiste em uma via férrea, pensada inicialmente para ter 1.319 quilômetros de extensão, passando por 23 municípios só no Estado do Pará. Uma empresa da China, principal país consumidor de minérios da região, já indicou o interesse na construção, que deve interligar o sul do Estado a um dos principais portos brasileiros para exportação, no município de Barcarena, no Pará.
O empreendimento, que tem sido elaborado a longo prazo e ultrapassado mandatos governamentais, não prevê transporte de pessoas: servirá apenas ao escoamento de produtos agrominerais. O primeiro Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) do projeto data de 2017 e já vinha sendo discutido pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia do Pará (Sedeme), passando para a Secretaria de Transportes (Setran) mais recentemente.
"O traçado inicial começa no município de Barcarena, de onde segue até atravessar a região de produção de palma, na direção sul-sudeste, recortando os municípios de Paragominas, produtor de bauxita/alumina, e Rondon do Pará, produtor de soja. Mais ao sul, segue de Marabá até Santana do Araguaia, no sul do Pará, município produtor de soja. A linha apresenta três desvios e cinco estações ferroviárias. Os desvios estão localizados nos municípios de Tomé-Açu, Dom Eliseu e Rondon do Pará. As estações localizam-se nos municípios de Barcarena, Paragominas, Rondon do Pará, Marabá e Santana do Araguaia", cita o relatório produzido pelo governo, que levantou os possíveis impactos socioambientais do empreendimento.
COMUNIDADES
O relatório do projeto da Ferrovia Paraense detalha também o cenário que diz respeito às populações que poderiam ser afetadas pela construção. Nos municípios por onde a ferrovia deve passar, o estudo previa impactos diretos e indiretos envolvendo onze comunidades e vilas, 02 assentamentos com 5.459,563,5 hectares e 123 famílias, além de três acampamentos com 528 famílias, 189 fazendas e sete comunidades quilombolas, em uma área de 34.942,01 hectares.
O documento também cita que, “após consulta à Fundação Nacional do Índio (Funai)” – atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas – “constatou-se que não há interferências em Terras Indígenas demarcadas, bem como comunidades em fase de demarcação, dentro do limite de 10 quilômetros do empreendimento". No entanto, em agosto de 2022, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou um procedimento de acompanhamento do licenciamento ambiental e dos impactos da ferrovia na Terra Indígena Las Casas, do povo Kayapó, na cidade de Pau D'Arco, no Pará. A movimentação ocorreu a partir de uma reunião em março de 2018, quando lideranças indígenas indicaram que a ferrovia passaria a apenas três quilômetros da comunidade tradicional.
Como resposta, dentro do procedimento do MPF, a Sedeme informou, em julho de 2021, que não havia Terra Indígena próxima ao raio do traçado da via férrea. A Funai chegou a indicar presença de Terras Indígenas em distâncias superiores ao limite de dez quilômetros da ferrovia: em Nova Jacundá (a 12 quilômetros), Mãe Maria (12 quilômetros), Las Casas (13 quilômetros), Tembé (13 quilômetros), Sarauá (14 quilômetros) e Barreirinha (17 quilômetros).
Já um ofício da Secretaria de Meio Ambiente (Semas) do Pará, de 2019, citava uma nota técnica apontando ausência de sobreposição de áreas militares, Terras Indígenas e Unidades de Conservação. Por outro lado, a Semas indicava que o desenho da ferrovia estaria próximo de comunidades quilombolas de Centro Ouro (5,07 quilômetros); Ramal do Piratuba (5,18 quilômetros); São Sebastião (7,92 quilômetros); Santa Luzia do Traquateua (9,70 quilômetros); e Santa Maria do Traquateua (9,98 quilômetros).
Assim, um novo traçado do projeto foi entregue em 2021. Nele, o governo fez ajustes não só no desenho, mas também do tamanho da ferrovia. Em julho daquele ano, um parecer técnico da Sedeme informava que a Ferrovia Paraense passaria a ter a metade do desenho inicial (515,02 quilômetros).
INVESTIMENTO CHINÊS
A Sedeme anunciou a criação de grupo de trabalho pelo governo paraense para realização de consultas prévia, livres e informadas aos povos e populações tradicionais. Desde então, o projeto vem sendo apresentado em municípios paraenses e até a investidores chineses, em busca de acordos e apoios.
Em abril de 2023, foi assinado um memorando de entendimento entre o governador do Pará, Helder Barbalho, o vice-presidente executivo de Assuntos Corporativos e Institucionais da empresa Vale, Alexandre Silva D'Ambrosio, e um representante da maior construtora chinesa, a Communications Construction Company (CCCC), Sun Liqiang. O documento demonstra intenção chinesa de investir na construção da Ferrovia do Pará, integrando Marabá ao porto de Vila do Conde, em Barcarena, com investimentos previstos em US$2 bilhões, ou seja, R$ 10 bilhões. “Esse empreendimento gera desenvolvimento, agrega a logística do nosso Estado, desenvolve a nossa economia e gera mais empregos para nossa população”, avaliou Helder Barbalho à época da assinatura.
Já a Vale, importante mineradora com projetos de extração no Pará, anunciou o comprometimento em tirar do papel novos trechos de ferrovia, para interligar a região de Marabá ao Porto de Vila do Conde, em Barcarena. Segundo a empresa, o projeto deve consumir a maior parte de quase R$ 3 bilhões prometidos pela companhia à comissão parlamentar da Assembleia Legislativa do Pará (Alepa) que tem como foco as atividades da empresa no Estado.
Para China, investimentos na Amazônia são estratégicos
O Pará segue uma potência brasileira nas exportações minerais, confirmam dados do mais recente "Boletim Indústria Mineral do Pará", divulgados em 2022 pelo Sindicato das Indústrias Minerais (Simineral). Entre os produtos de exportação paraenses, 84% são minerais. O setor movimentou US$ 18,1 bilhões apenas no ano passado, tendo a China como a principal compradora. Apenas os negócios com o país asiático movimentaram US$ 10 bilhões, na aquisição de 119,9 milhões de toneladas, principalmente de minérios de ferro.
O professor e pesquisador do Instituto Federal do Pará (IFPA), Tiago Veloso dos Santos, reitera: a China não é só grande compradora de produtos agrícolas e minerais. Desde os anos 2010 o país tem feito grandes investimentos na área de logística em diversas outras regiões do planeta – e a Amazônia é um exemplo. No caso da Ferrovia Paraense, explica Veloso, a entrada da China na cadeia logística com um empreendimento dessa envergadura muda o papel do país no Brasil. “Para além de ser uma compradora, a China passa então a ser uma importante investidora nesse setor de logística, o que afeta as produções dos setores agrícolas e minerais na região amazônica", detalha.
Veloso afirma também que os investimentos em uma ferrovia na Amazônia seria uma forma da China garantir acesso aos produtos. "É como se fosse uma diplomacia de investimentos. Quer dizer, se investe em determinadas regiões do mundo para garantir a sua presença ali. Isso pode ter muita importância política diplomática para os chineses, já que esse seria um fator importante à necessidade da China de investir o seu capital acumulado, uma vez que é uma grande potência, disputando hegemonia com os Estados Unidos. Por isso o país faz com que suas empresas públicas e privadas invistam", pondera.
OPORTUNIDADES AO AGRO
Já que o Pará é um Estado de dimensões continentais, e ainda marcado por deficiências e insuficiências logísticas de transporte, o setor do agronegócio vê a ferrovia como uma oportunidade para impulsionar a circulação de mercadorias e alavancar as exportações para o mundo, como explica a assessora técnica da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa), Eliana Zacca. Ela lembra que o Pará é uma potência logística na América latina, como ponto mais próximo dos Estados Unidos, Europa e Ásia. O Estado possui uma rede hidroviária com oito bacias hidrográficas, sendo 48 mil quilômetros de rios navegáveis, e que, segundo lembra Zacca, ainda precisam ser melhor aproveitados.
"A duplicação do Canal do Panamá contribui para que o Pará se consolide como a melhor rota comercial para o agronegócio brasileiro, junto aos principais mercados consumidores mundiais, através de dois eixos – o Rio Tapajós/BR-163 e Rio Tocantins/BR-158/155. Na esteira do aumento da produção nacional de grãos, o Arco Norte, formado pelos portos de Itacoatiara, no Amazonas, Itaqui, no Maranhão, Santarém e Barcarena, no Pará, e Ilhéus, na Bahia, se consolida como um dos mais importantes corredores de escoamento para a exportação do país".
Zacca pontua que o setor produtivo paraense cresceu e se diversificou, principalmente nos setores agropecuário e mineral, "sem que tenha havido uma expansão adequada da infraestrutura de transportes". "Existe uma demanda reprimida de infraestrutura de transporte que requer crescentes investimentos nessa área, principalmente aqueles que contemplem a intermodalidade de transporte, como é o caso das Ferrovia Paraense e Ferrogrão, eixos ferroviários importantes na interligação com o porto de Barcarena".
Ela defende que esses investimentos podem contribuir para a redução de custos de transporte e aumento da competitividade, tanto das exportações, como das efetuadas pelo sistema portuário paraense. "É indiscutível a importância da Ferrovia Paraense, já que permitirá a ligação de uma região econômica das mais dinâmicas do Estado, com significativa produção agropecuária e mineral, ao porto de Vila do Conde. Além disso, esta ferrovia possui interoperabilidade com a Ferrovia Norte-Sul e Estrada de Ferro Carajás", aponta.
Projeto reafirma nova geração da economia agromineral da Amazônia ao mundo
O geógrafo Tiago Veloso dos Santos explica que a Ferrovia Paraense faz parte de um conjunto de projetos e programas que, desde os anos 1970, vem transformando a economia da Amazônia, especialmente no Pará, como um grande produtor de bens agrícolas e minerais.
O pesquisador cita que o município de Barcarena, ponto de partida da ferrovia, pode ser apontado como uma síntese dessas transformações. "Nessa cidade, há grandes projetos de mineração industrial e, mais recentemente, há a instalação de uma termelétrica para produção de energia. Então, vê-se a chegada de projetos desde os anos 2.000, tanto públicos quanto privados, para ampliação do porto de Vila do Conde”.
Veloso explica que há ainda um crescimento de portos privados para atender, além do escoamento de minérios para exportação, a produção de bens do agronegócio. "O projeto dessa ferrovia é, digamos, um projeto de nova geração de reafirmação da economia agromineral, devido a sua larga escala, sendo [a Ferrovia Paraense] maior que a ferrovia já existente, a Ferrovia de Carajás, que liga a Serra dos Carajás, no sul do Pará, ao porto de Itaqui, no Estado do Maranhão", avalia.
BASE LOGÍSTICA
O município de Barcarena é estratégico para a economia paraense. Por isso, em abril deste ano, parlamentares aprovaram projeto de lei que a torna parte da Região Metropolitana de Belém (RMB). A sua área abriga grandes projetos da mineração, entre outras atividades industriais.
O geógrafo Tiago Veloso lembra que a cidade já fazia parte do espaço de influência da metrópole pelos fluxos do projeto industrial nos anos 1970 – e que a Região Metropolitana de Belém vem se consolidando no Estado como uma importante base logística do mercado, mais recentemente do agronegócio. “A economia do agronegócio que antes era mais afastada de Belém, se aproxima mais da capital por conta da adoção do biocombustível, em torno da produção de dendê”, aponta.
Veloso diz também que a transformação da Região Metropolitana de Belém em plataforma logística para a Amazônia não é por acaso. “Com Barcarena agora integrada à região metropolitana de fato, a cidade que já tinha esse investimento na logística agora pode fazer parte de um complexo só, e isso vai se intensificar com o tempo, principalmente se uma ferrovia interligar o sul do Pará à metrópole”.