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TUDO SE TRANSFORMA

Indústria da reciclagem é mar de oportunidades

Ainda pouco explorado, o setor tem potencial de gerar lucro, emprego e renda na Amazônia. Em 2022, as empresas de reciclagem faturaram R$ 4 bilhões somente com os plásticos

Eduardo Laviano

13/10/2023

Mitigar os impactos negativos dos resíduos sólidos e impedir que se transformem simplesmente em "lixo" é crucial em todo o mundo, mas, na Amazônia, essa consciência ganha ainda mais importância.

 Afinal, trata-se de um ecossistema onde pulsam rios e nascentes, faixas de litoral, mangues, lençóis freáticos e inúmeros animais e áreas de florestas. Ou seja, um ambiente nada propício para a proliferação de plásticos ou metais sem destinação correta, prática ainda muito comum, especialmente em centros urbanos e regiões metropolitanas. 


E a solução está na reciclagem. Esse é um mercado que chegou a arrecadar R$ 4 bilhões somente no setor de plásticos em 2022, mas que também perdeu R$ 5,7 bilhões pela falta de manejo correto de resíduos descartados. 

Também no ano passado, 82 milhões de toneladas de resíduos foram descartadas no Brasil e apenas 4% desse total foram reciclados. Os dados são da Associação Internacional de Resíduos Sólidos. São números que até podem parecer desanimadores à primeira vista, mas que revelam uma enorme brecha para uma nova indústria sustentável e lucrativa. 


Há onze anos, Jucélio Soares percebeu essa oportunidade e resolveu que era preciso tomar uma atitude: garantir reciclagem em larga escala gerando renda para os catadores.  

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Jucélio Soares, da Norte Amazônia: "é preciso lembrar que as sucatas de ferro e de alumínio são infinitamente recicláveis" (Aislan de Paula)

"Se tem um local onde a prática da reciclagem deve ser cada vez mais relevante é a Amazônia. Ela ajuda a diminuir a dependência exclusiva de insumos extraídos da natureza e exploração mineral, o que ajuda a combater as mudanças climáticas. A sucata ferrosa no processo de produção de aço novo reduz drasticamente as emissões de carbono para atmosfera, além de diminuir o uso de energia elétrica e do próprio minério. É preciso lembrar que as sucatas de ferro e de alumínio são infinitamente recicláveis, com inúmeras possibilidades de uso. Simplesmente jogar no lixo e não fazer nada não é uma opção. E hoje vemos um debate forte sobre descarbonização do processo de produção de aço, chamado no Brasil de 'aço verde' e já presente em Açailândia (município do Estado do Maranhão), com a Aço Verde do Brasil, usando sucata como matéria-prima e hidrogênio como energia. É um processo para o qual mundo está apontando e que a Amazônia precisa fazer parte", avalia Jucélio, que é fundador da Norte Amazônia, empresa especializada no manejo de sucatas situada no município de Benevides, na Região Metropolitana de Belém.


DESAFIOS


Converter a sucata em commodity é um processo caro e demorado. O beneficiamento começa pela fase chamada de segregação, na qual as impurezas são retiradas, como resquícios de borracha, plástico e madeira. Após isso, é necessário fazer um processamento e, então, uma prensagem com equipamentos hidráulicos, que transforma a sucata em blocos quadrados como os vistos na animação vencedora do Oscar intitulada "Wall-E" (2008). 

E há ainda os cortes, no processo chamado de cisalhamento, para que tudo seja padronizado de acordo com as necessidades dos compradores. Todo esse material que antes seria descartado é transformado em vergalhões, barras e até latas. Mas, antes de tudo isso, o primeiro passo é o mais importante: coletar resíduo com o apoio de catadores, cooperativas, pequenos sucateiros e grandes e médios geradores de sucata.



Brasil supera países ricos na coleta de latas de alumínio


Os preços das sucatas sofrem variações como toda commodity. O quilo da sucata de ferro, por exemplo, custa R$ 0,80 e um bloco tem 200 quilos. Já a de alumínio é mais leve, mas o quilo é negociado a R$ 6, o que explica o expressivo índice de coleta de latinha no Brasil, que passou dos 99% em 2021. Com isso, o Brasil se tornou o maior coletador de latas de alumínio do mundo, superando países como o Japão e os Estados Unidos. Mas ainda há muito para se melhorar. 


"Existe a falta de apoio dos setores público e privado. Trabalhar com reciclagem é encarado, muitas vezes, como trabalhar com lixo. Isso já marginaliza a atividade e os próprios catadores. Há limitações práticas, como a falta de linhas de crédito para empresas de reciclagem, algo sistêmico que atinge toda a cadeia. Os catadores precisam de uma complementação de renda pelo exercício da profissão, que é o que vem se desenhando, ainda de maneira incipiente, com o programa 'Pró-Catador', do governo federal. O que os catadores conseguem coletar e vender não garante uma vida digna. Não há isenções tributárias ou facilidades nos impostos. Como isso é possível, se é uma atividade benéfica para a sociedade com equipamentos caros e muita mão de obra?", lamenta Jucélio Soares, da empresa Norte Amazônia. 


LOGÍSTICA


A engenheira agrônoma Daniela Portal concorda com a opinião de Jucélio. Ela começou a trabalhar voluntariamente com catadores no "Lixão do Aurá", situado na Região Metropolitana de Belém, e acabou se aproximando de doze cooperativas que atuam na capital paraense, prestando consultorias, formando associações e estabelecendo conexões com empresas e instituições. Segundo ela, outros desafios sensíveis precisam ser solucionados.

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No Brasil, o catador sofre com a discriminação e não consegue ter renda suficiente para sustentar a família (Tarso Sarraf)


"Temos fartura de recursos naturais na Amazônia, mas já temos visto impactos negativos do descarte irregular no meio ambiente. Reciclar é uma oportunidade de reverter esse cenário, mas não temos indústria o suficiente para absorver ou comprar esse material. A questão logística e as distâncias pesam, pois o fato de a Amazônia estar distante de grandes centros compradores encarece o frete. E se vendermos para 'atravessadores' no Pará, eles querem pagar muito pouco, com quase nada de lucro para os catadores. Temos uma dificuldade imensa de reciclar vidro. Sempre digo que todos tomem suas cervejinhas, mas que comprem latas de alumínio. Temos uma demanda altíssima de reciclagem de vidro na Amazônia, mas a compradora mais próxima fica no Estado de Pernambuco. O valor do frete para transportar 23 toneladas de vidro é impraticável. Sem contar a cobrança do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). O que falta é conscientização sobre o tema, para mais bancos investirem, já que as cooperativas carecem de capital de giro. Há muitas oportunidades para melhorar, pois é um mercado que tem dado saltos cada vez mais altos. A fome dói, então as pessoas trabalham e querem dignidade. Hoje, cooperativas entendem que podem se tornar empresas, muitos já conseguem armazenar o material por 15 dias antes de vender e dividir lucros de maneira organizada. Há cada vez mais capacitação, mas as prefeituras precisam contratar essas cooperativas para que os municípios fomentem essa coleta seletiva que gera emprego e renda", afirma. 


LEGADO


Jucélio mantém a fé na indústria da reciclagem apesar das dificuldades. E tem motivo: ele tomou gosto pelo tema porque o avô dele, Egydio Viggiano, já tinha, há décadas, a certeza de que a reciclagem era o único futuro possível.

"Ele tinha uma sucata, era chamado de 'Rei do Ferro Velho'. Ele começou como mecânico, foi guardando peças, até que chegou uma siderúrgica disposta a comprar tudo. Então me inspirei na história dele. Os aniversários e churrascos de domingo eram sempre no ferro velho, e eu sempre lá brincando com meus primos, escalando montanhas de sucatas. Então reciclar, para mim, é honrar o trabalho dele. Temos que ser a mudança que buscamos no mundo, puxar para gente essa responsabilidade de trabalhar na Amazônia em consonância com as comunidades do entorno, gerando renda, com projetos sociais junto aos municípios. Falo para os meus filhos que temos que ajudar a proteger o planeta e trabalhar para adiar o fim do mundo todo dia", afirma Jucélio.

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"Falo para os meus filhos que temos que ajudar a proteger o planeta e trabalhar para adiar o fim do mundo todo dia", Jucélio Soares


Iniciativas fomentam a reciclagem nos Estados do Pará e Amazonas


Agora imagine a cena: surfistas curtindo a beleza e as ondas do litoral amazônico e, de repente, se deparando com montanhas de lixo nas areias e dentro d'água. "Sem condições. Tínhamos que agir", conta Brenda Lopes, psicóloga especialista em desenvolvimento sustentável e educação ambiental do Instituto Manguezal. 

Um grupo de surfistas e profissionais ambientais decidiu, então, criar o projeto "Tenda Verde", para trabalhar com conscientização e coleta em balneários do Estado do Pará, como os dos municípios de Salinópolis e Barcarena e das Ilhas de Algodoal (no município de Maracanã) e de Mosqueiro (na capital paraense), montando barracas que, além da coleta de resíduos, oferecem aulas de surf, técnicas de compostagem, dicas de reutilização e ainda mobiliza universidades e institutos de pesquisa. 

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ONG promove a consciência ambiental em balneários paraenses através do projeto "Tenda Verde" (Instituto Manguezal)


"A hora deste debate é agora. Você compra uma garrafa de água mineral por cinco reais e, depois que toma o conteúdo em um minuto, ela não vale mais nada? Não dá para compactuar com isso. Entramos em contato com o Movimento Nacional dos Catadores e fomos juntando todos da região. O catador antes era marginalizado, mas hoje a gente celebra essa profissão, ajuda com a capacitação e no contato com os compradores. Eles são garimpeiros urbanos, pois 20 garrafas pets valem R$ 2. Isso é uma conversa que envolve comerciantes, consumidores, catadores e que precisa ser mais comum. Queremos disseminar essa cultura de que plástico e nenhum outro resíduo pode ser de uso único. O resíduo não é o vilão, o vilão é a falta de logística reversa. Tudo está interligado. A coleta seletiva é lucrativa, bem melhor do que encher aterros sanitários de plástico. Se houvesse investimento em caminhões adequados para separação, com campanhas publicitárias, poderíamos gerar empregos para 1% da população de Belém, por exemplo", garante Brenda.


Em Manaus, no Estado do Amazonas, outra iniciativa de sucesso é o "Drive-thru Ambiental". O fundador Thiago Andrade notou que, ao longo da pandemia de covid-19, as pessoas foram deixando de se sentir seguras para descartar resíduos em pontos de reciclagem que frequentavam anteriormente, por conta do isolamento social. 

Graças a ideia dele, agora tudo pode ser feito de carro entre uma correria e outra. A iniciativa ocorre no primeiro, segundo e no terceiro sábado de cada mês, com tendas que funcionam entre 8h30 e 14h. Parece uma ideia até simples, mas os resultados são expressivos: duas mil toneladas já foram coletadas desde setembro de 2020.


DOAÇÃO


"É um conceito de gestão humanizada, porque destacamos que nada é lixo. Algumas coisas podem não nos servir mais naquele momento, mas podem ser de grande valor para catadores melhorando a qualidade de vida deles. Temos apoio de empresas, como a Sanitek e a Construtora Capital, além de condomínios, pois os catadores retiram tudo e fazem triagem para vender. Mas o impacto não é só na vida deles, e sim na cidade toda. O que é reciclado deixa de poluir os igarapés, as vias públicas, as margens de rios... Sempre usamos o termo 'doação' e não 'descarte', pois aí as pessoas entendem que não é lixo, que isso ajuda as pessoas. Quase tudo o que chamamos de lixo é, na verdade, dinheiro que pode ajudar gente que precisa", explica.