Romances na beira do rio, segredos de florestas intocadas e lendas que vivem debaixo dos nossos pés.
Muita saudade de casa, da infância e de como o mundo era antes da chegada dos homens brancos.
E cidades tão vivas quanto o agora, transbordando amor, violência, sexo e fé.
Há espaço para tudo na literatura amazônica. Até para o que nunca foi escrito, segundo o professor Paulo Nunes, que é doutor em Língua Portuguesa.
"A literatura da Amazônia começa com as narrativas orais antes da chegada do colonizador. O que temos de narrativas míticas através da voz são, de fato, o início de tudo. Porque a letra, a literatura escrita, é uma imposição da colonização. As narrativas dos nativos antes do colonizador devem ser consideradas como monumento literário da região e são o início de tudo. Infelizmente, muito disso se perdeu com a violência e o extermínio", aponta ele, que atua no programa de Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia (Unama), em Belém.
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Se os primeiros passos da literatura amazônica não estão registrados em papéis, os segundos passos não só sobreviveram como atravessaram oceanos cinco séculos atrás.
Isso é porque Espanha e Portugal nomeavam cronistas para acompanhar as frotas de exploradores que rodavam o mundo em nome dos reis. A missão deles era relatar tudo o que viam.
Mas isso não os impedia de conferir aspectos fictícios para a realidade, segundo a doutora em Teoria Literária Amarílis Tupiassú.
O frei espanhol Gaspar de Carvajal, por exemplo, acompanhou Francisco Orellana na missão que atravessou o rio Amazonas em 1542, do Peru ao território que hoje abriga o Pará.
Foi a primeira vez que a Amazônia acabou descrita e lida com riqueza de detalhes.
Estes primeiros relatos deram origem a mitos como o das Amazonas, as guerreiras impávidas da floresta, e o El Dorado, lugar onde os homens pulavam nos rios e emergiam pingando ouro líquido.
De acordo com Amarílis Tupiassú, estes momentos foram definidores do imaginário da região.
"Temos figuras como o Felipe Bettendorf, um jesuíta que veio para cá muito novo para doutrinar os índios e substituir Tupã por Cristo. Por volta de 1662, ele começa a contar bem como os portugueses tratavam os indígenas, os relatos dos abusos, mortes. Escreve um livro sobre a história dos indígenas após a chegada do europeu. E tem o Padre Antônio Vieira, um cara tão grande que o Fernando Pessoa dedica um poema a ele e o chama de Imperador da Língua Portuguesa. Ele viveu aqui, entre o Pará e o Maranhão, e escreveu cartas lindas sobre a Amazônia. Eles são exemplos de momentos em que o poeta substitui o missionário", aponta a professora, que está preparando um livro sobre o tema.
Escritores do século XIX
Nascido em Barcelos, no Amazonas, Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha dá início à criação puramente literária na região, segundo Amarílis Tupiassú, com bastante inspiração oriunda dos clássicos europeus.
Muito da obra dele, porém, se perdeu. Primeiro em 1832, quando uma bagagem do filho dele, o primeiro presidente da província do Amazonas, João Batista Figueiredo, naufragou em Icoaraci.
As malas estavam cheias de manuscritos do pai. Em 1835, a casa Tenreiro Aranha em Belém foi saqueada e lá se foram folhas e mais folhas de poesia originalmente amazônica.
A notoriedade para a literatura da região se iniciou mesmo com Inglês de Souza, segundo Paulo Nunes. Natural de Óbidos, oeste do Pará, o autor trabalha a memória da cultura da Amazônia em paralelo com a vertente naturalista.
Segundo Nunes, é por conta do escritor de "O Cacaulista" (1876) e "O Missionário" (1888) que mais tarde surgiram nomes como Dalcídio Jurandir, Márcio Souza e Milton Hatoum.
"É uma obra que cria uma espécie de herança da região. A principal característica é o apego à cultura ribeirinha e da floresta, fixando o homem ribeirinho neste espaço, descrevendo tudo com muita propriedade. O apuro descritivo do Inglês de Souza faz com que ele retrate tudo com muita fidelidade, seja no campo ou na cidade. Uma das mais belas descrições do Ver-o-Peso é dele, em 'O Missionário'", conta Paulo Nunes, que ressalta também a importância de "Contos Amazônicos" (1892).
Paulo Nunes aponta que a literatura amazônica vai além dos que nasceram na região.
Ele destaca a vinda do escritor e jornalista Euclides da Cunha à Amazônia como fundamental para a descrição de uma terra bruta, mal acabada e com dificuldades de se inserir no resto do Brasil, uma visão que perdura até hoje.
A publicação de "À Margem da História" (1909) é fruto da viagem de Cunha com objetivo de cooperar para a demarcação de limites entre o Brasil e o Peru.
Relata não só o cotidiano da região como denuncia a exploração dos seringueiros na floresta, em uma época em que Belém e borracha eram sinônimos.
"Tudo o que vem depois ou vai refutar ou vai contrastar o que diz Euclides da Cunha", diz Nunes.
Outros "viajantes" também marcaram a escrita sobre a região, em especial os modernistas: o paulista Mário de Andrade desembarca em Belém em 1927 e inicia uma robusta produção de poemas acerca da Amazônia, além da coluna "O Turista Aprendiz", para o jornal "O Diário Nacional", com crônicas e até mesmo fotografias feitas por Andrade.
Toda essa intimidade com o cotidiano amazônico deságua em "Macunaíma" (1928), considerada a obra-prima do autor e que disseca a sociedade brasileira segundo os olhares de um indígena que vai parar em São Paulo em uma trama bem humorada e cheia de reviravoltas e boas doses de realismo fantástico.
"Existe uma literatura amazônica endógena e a exógena. O Raul Bopp também vem para cá e diz que precisamos ouvir as vozes da floresta. Manuel Bandeira escreve o poema Belém do Pará (1928) e versa 'Nortista gostosa, eu te quero bem' ao se referir à cidade. São pessoas de fora que ajudaram a construir o patrimônio literário da região", diz Paulo Nunes.
Descolados e descolonizados
Se Henry Miller foi o Proust da classe trabalhadora, os membros da Academia do Peixe Frito foram os modernistas amazônicos que queriam distância da burguesia, não tinham um pingo de saudade da Belle Époque e sonhavam em colocar os negros, os caboclos e a periferia no topo.
Nesta época, ganharam destaque muitos célebres poetas e escritores, como Bruno de Menezes, Jaques Flores, Dalcídio Jurandir, Rodrigues Pinagé e Eneida de Moraes.
Agentes da baixada que renegavam reproduções epistêmicas do passado e queriam começar algo novo, tudo a partir de almoços no Ver-o-Peso, regados, claro, a muito peixe frito.
"O Bruno de Menezes vai iniciar a literatura negra, cuja temática central é o ser humano negro. É uma literatura linda e profundamente social. Temos todas as movimentações de operários, os folguedos das pessoas pobres do subúrbio. Já não tem mais nada a ver com a literatura da Europa, mas é uma literatura integrada ao restante do mundo. Muito se pensa na literatura da Amazônia como algo muito regional, mas na obra do Bruno essa visão é extrapolada, pois ele retrata, acima de tudo, a condição humana", diz Amarílis Tupiassú.
Foi nesta época que o mundo se apaixonou pelas palavras de Dalcídio Jurandir, com a publicação do livro de estreia do romancista marajoara, "Chove nos Campos de Cachoeira" (1941).
É a obra que inaugura uma sequência de 10 livros conhecida como Ciclo do Extremo-Norte, que retrata a saga do povo amazônida no despertar do século XX e os desafios enfrentados nas ilhas e nas cidades da região, misturando imaginação e autobiografia.
"São 10 livros com os mesmos personagens que entram e saem da história. É uma literatura complexa, belíssima, traduzida no mundo todo e estudada em universidades, com fluxos de memória entre prosa e poesia. Dalcídio é a prova de que a nossa literatura não deve em nada para as grandes literaturas do mundo", afirma Tupiassú.
A geração seguinte de escritores da região traz nomes como Max Martins, Benedito Nunes, Haroldo Maranhão e Ruy Barata. Paulo Nunes lembra que tratam-se de artistas da classe média, que retomam inspirações da literatura inglesa e francesa.
"São muitas influências, utilizadas de uma forma muito dinâmica, no sentido que não existe uma característica exata. Mas é uma escrita de muito primor e cuidado com a palavra, focada no exercício da palavra", pontua o professor.
"Depois, tivemos uma poesia forte de grupos alternativos que enfrentaram a ditadura, como o Fundo de Gaveta, nos anos 1970 e 1980. Nesse momento, o nome principal é o João de Jesus Paes Loureiro, que em 1984 recebe o prêmio de melhor livro de poesia da Associação Paulista de Críticos de Arte, por "Altar em Chamas'", conta.
É também na década de 1980 que Milton Hatoum publica o romance de estreia "Relatos de um certo oriente" (1989), seguido por outras obras importantes do amazonense, como "Dois Irmãos" (2000) e "Cinzas do Norte" (2005).
Diversidade literária ganha força com indígenas e mulheres
Nascida na aldeia Ticuna, em Belém dos Solimões, no Amazonas, Márcia Kambeba era fã de carteirinha da própria avó, que compunha músicas e escrevia poesias.
E Márcia, com sete anos de idade, adorava recitá-las. Aos 14 anos, começou a escrever as próprias poesias, inicialmente distante de questões ambientais.
Com o tempo, veio a maturidade artística e a urgência de tratar da floresta e dos medos e angústias dos povos indígenas.
Hoje, as palavras de Márcia são até leitura obrigatória de universidade, a exemplo da obra "Ay kakyri Tama: Eu moro na cidade" (2013).
"Há o olhar de denúncia dos maus-tratos que a Amazônia vem sofrendo, a violência contra seus povos. Pela literatura, anunciamos que estamos vivos, a nossa existência e resistência. É uma poesia política, pois fala de territórios, direitos, dos rios poluídos, do garimpo ilegal. Ter uma literatura poética sendo estudada é inspirador e também é um peso, pois me força a escrever ainda mais e com cada vez mais fundamentos e estudo", diz ela.
Kambeba conta que é difícil as editoras se interessarem por livros de poesia, o que a levou para o caminho da autopublicação.
Ela mesma bancou o livro de estreia e começou a distribuí-lo em praças e pontos turísticos de cidades que visitava pelo Brasil.
Hoje, sob o selo da editora Jandaíra, Márcia já tem dois novos livros em gestação.
"Ainda tem quem se assuste, duvide que existe indígena escritor ou indígena intelectual. E aí a gente vai lá, explica com todo carinho, mostra nosso trabalho. Depois do contato cruel com o europeu, muitas aldeias foram esvaziadas, queimadas. Esse processo de colonização ainda se arrasta. Então buscamos desconstruir ele por meio da arte", reflete.
Iaci Gomes, escritora de contos de terror, também optou pela autopublicação com "Nem te conto" (2021).
Ela lembra que o fato de o terror ser um ambiente literário pouco convidativo para mulheres sempre a instigou ainda mais.
Leitora aficionada e fã de Stephen King e Walcyr Monteiro, Gomes retrata as ruas de Belém sob a ótica do fantástico, impulsionada pelas mentes de personagens contemporâneos.
"Eu sempre li que a gente tem que escrever sobre o que a gente conhece. Então os escritores que retrataram a Belém de antigamente estavam escrevendo sobre a realidade deles. Hoje temos uma nova era, com a internet e as redes sociais, precisamos atrair jovens para a literatura, equilibrando tradição e contemporaneidade. Escrevo sobre minhas andanças por Belém e mesmo assim há lugares na minha história que não existem mais. Adoro quando as pessoas dizem que querem conhecer lugares que cito no livro, principalmente os mais jovens", comenta a escritora e jornalista.
Segundo Iaci Gomes, o fato de ela e Kambeba terem iniciado com autopublicações revela o pouco incentivo para a produção literária na região.
Segundo Gomes, é preciso que as editoras estejam cada vez mais abertas a novidades.
Já Márcia lembra que o reconhecimento que conquistou nasceu longe de onde ela nasceu, em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro.
"Ou seja, primeiro alguém de fora tem que dizer que a gente presta. O certo seria o inverso. O amazônida precisa ler escritores da Amazônia, principalmente as mulheres e indígenas. É uma barreira ainda e os editais de cultura precisam ajudar a quebrá-la. Enquanto não mudarmos isso, não vamos prosperar", diz a escritora.
O professor Paulo Nunes lembra ainda de outras mulheres que contam a história da Amazônia no século XXI: é o caso de Monique Malcher, de Santarém, que ganhou o Prêmio Jabuti na categoria Contos com o livro "Flor de Gume" (2020). Ele também ressalta a importância de nomes como Giselle Ribeiro, Isadora Salazar e Rosângela Darwich.
Editoras locais fazem trabalho precioso
Sediada em Bragança, nordeste do Pará, a editora Pará.grafo, do escritor e editor Dênis Girotto de Brito, imprime desde os clássicos e também novos clássicos, como "Cabaré dos Bandidos" (1989), de Salomão Larêdo, até "O Cheiro dos Homens" (2019), de Marcos Samuel Costa.
É uma operação pequena e majoritariamente terceirizada, mas focada em descobrir novos autores sem deixar os antigos caírem no esquecimento.
Em alguns anos Brito consegue publicar sete livros. Em outros, o número já chegou a um. Ele afirma que o trabalho é gratificante, mas desafiador.
"O principal entrave é a questão logística, pois temos dificuldade grande de distribuir essas obras. Daqui, consigo abastecer livrarias de Belém e algumas poucas no Estado do Pará. Então, a força da nossa atuação é a internet, a Amazon. A logística é complicada em um Estado de tamanho continental e o número de livrarias na região é muito reduzido, isso dificulta. Nós tentamos deixar o livro o mais acessível possível, então tentamos deixar abaixo de R$ 50. Oitenta por cento dos nossos livros estão disponíveis em e-book, o que também ajuda. E estamos sempre abrindo editais para novos autores", conta Girotto de Brito, que toca a empresa ao lado da esposa, com ambos fazendo um pouco de tudo.
Personagens da Belém contemporânea chegam à França
Diferente de boa parte da literatura canônica da região, o foco do escritor Edyr Augusto Proença não são as florestas, rios e seus seres de carne ou de imaginação.
É no calar da noite das ruas de Belém que ele busca inspiração para seus personagens, entre marginais e garotas de programa, sempre recheados de muita perversão e sensibilidade, entre crimes e amores.
Com "Os Éguas" (1998), Edyr venceu o Prêmio Caméléon da Universidade de Lyon e virou sucesso na França, com diversas obras seguintes também traduzidas para o francês.
"Me espanto com o nível de interesse estrangeiro pelas histórias, mas sou de Belém e meu sonho é que meu próprio povo leia meu livro. Quero que as pessoas reconheçam as ruas onde as histórias se passam", confessa.
Edyr Augusto, que também escreve peças teatrais, conta que geriu um teatro que funcionava na zona de meretrício da capital paraense.
Por lá, sempre falava com todo mundo ao redor, fosse um traficante simpático ou cuidador de carro estressado.
Sem julgar ninguém, ele percebeu que as pessoas vão se aproximando, desabafando, reclamando da vida e contando histórias.
"Você pega a cadência da melodia, da fala, as histórias, vocabulários. Não quero que o leitor leia um capítulo e vá dormir. Todo escritor tem seu próprio método e o meu é bem delirante, frenético. Escrevo como quem vive aquilo em tempo real e não planejo nada. Penso no máximo nas 15 primeiras linhas pois elas são decisivas para o leitor continuar", revela.
Conhecido pelos parágrafos curtos e sentenças rápidas, Edyr Augusto também é notável pelo hiper-realismo impiedoso com o qual descreve Belém.
Há quem o critique, mas ele está tranquilo e muito consciente do próprio papel:
"Algumas pessoas se queixam um pouco dizendo que eu fico falando coisas não muito amáveis sobre a minha cidade. Mas eu penso o contrário. Uma vez uma pessoa me disse que minha veia jornalística resultava em livros como uma boa dose de denúncia. E é isso que o artista faz. Se escrevo algo, também penso em mostrar o mundo como ele é, na esperança que ele possa mudar para melhor".