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RESGATE

Manifestações culturais expressam resistência popular

Processo de desvalorização da Amazônia começou na colonização. Pesquisador defende políticas públicas eficazes para manter a tradição

Camila Azevedo

27/06/2024

As dimensões que envolvem a Amazônia vão além das florestas e do contexto socioeconômico. A diversidade do bioma rompe barreiras e se reflete na cultura local, expressada pelos mais de 38 milhão de habitantes da região em vários formatos: na música, na dança, nas manifestações de rua, nas cerâmicas e na literatura. Valorizar essa realidade, para muitos, é uma forma de preservação do meio ambiente, da memória, da história de um povo e de toda luta que ele carrega em busca de visibilidade.

Em 2023, o Ministério da Cultura (MinC) destinou um repasse de cerca de R$ 343 milhões para o desenvolvimento do setor em sete estados do bioma (Acre, Amapá, Amazonas, Roraima, Rondônia, Pará e Tocantins). O investimento é proveniente da Lei Paulo Gustavo (LPG), maior fundo cultural do Brasil, contando com R$ 3,862 bilhões para a execução de ações e projetos em todo o território nacional. No mesmo ano, a pasta lançou o Programa Mais Cultura, separando R$ 13,8 milhões para financiar projetos culturais em todos os territórios da Região Amazônica.

O Pará despontou com a maior quantidade de investimentos da GLP no ano passado em todo o bioma. O MinC fez um repasse de R$ 165,4 milhões. O estado é um dos mais importantes da Amazônia em termos econômicos e conta com uma série de manifestações culturais. Na capital, Belém, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, tradição popular e religiosa, está presente há mais de 200 anos. Em 2004 foi reconhecido como patrimônio cultural imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Em 2014 o Iphan garantiu o mesmo reconhecimento ao carimbó, dança típica do Pará e da Amazônia, de origem indígena. No oeste do estado, a Festa do Sairé, realizada desde o século 17 em Alter do Chão, a cerca de 40 quilômetros de Santarém, reúne milhares de pessoas em uma comemoração que detalha a influência da colonização na região. Já no nordeste paraense, em Bragança, a Marujada de São Benedito, tradição de mais de 220 anos, foi trazida pelos escravos e festeja o santo de origem etíope. Blusas brancas, saias rodadas e chapéus fazem parte dos paramentos.

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Círio, carimbó, Sairé, Marujada de São Benedito e Arraial do Pavulagem são manifestações culturais de maior destaque no Pará (Foto: Tarso Sarraf / O Liberal)

Pavulagem

Em Belém, durante o período junino, os arrastões do Arraial do Pavulagem promovem um espaço de diversidade e inclusão à população, levando mais de 140 mil pessoas ao longo de quatro domingos de cortejos. A iniciativa tem 37 anos de história e está consolidada como uma das maiores manifestações da Amazônia, tendo o objetivo de preservar a cultura local por meio de músicas, danças e tendências. A figura emblemática do boi, usada durante os festejos, é uma influência vinda de outras partes do bioma amazônico e remete à época da escravidão.

Júnior Soares, músico e cofundador do Arraial, explica que esse processo de resgate cultural começou pela percepção de que as rádios não tocavam os ritmos regionais, como o carimbó e as toadas de boi. Encontros em frente ao teatro Waldemar Henrique, na praça da República, em Belém, foram uma forma encontrada para superar os problemas de visibilidade que as músicas produzidas na região enfrentavam. “Assim inauguramos, sem querer, uma das maiores manifestações da Amazônia. Eram 30 pessoas no início”, conta.

Tradição ganhou características locais com o tempo

O primeiro nome dado ao Arraial do Pavulagem foi Boi Pavulação do Teu Coração. “Pavulagem” é uma palavra regional que remete ao que é bonito. Com dez anos de criação, o grupo sentiu necessidade de se aprofundar ainda mais nos ritmos locais e passou a pesquisar, de forma imersiva, a presença dos mestres de composição. “Convivemos com eles, fomos para Cametá. Mergulhamos, porque nossa intenção era um trabalho autoral a partir daí, fazer nossas músicas. Quando introduzimos outros ritmos, perdeu o sentido ser apenas Boi Pavulagem do Teu Coração”.

“Precisamos alterar o nome para introduzir outros ritmos. A partir desse momento, pensamos que o boi dança fora da rua, dança em arraial, em festa junina, então arraial é o nome de um território interessante, por isso vamos fazer o território do Boi Pavulagem. Quando tomamos a decisão de ampliar o repertório e mudar de nome, a praça começou a ficar pequena. Aquelas 30 pessoas que iniciaram passaram a ser mil, a ser 5 mil. Começamos a sair da escadinha [da Estação das Docas] em direção ao teatro Waldemar Henrique”, lembra Júnior Soares.

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“Queremos fazer com que a música, ligada à tradição, à ancestralidade, possa alçar voos mundiais”, afirma Júnior Soares, músico e cofundador do Arraial do Pavulagem (Foto: Ivan Duarte / O Liberal)

Participação

Os cortejos são gratuitos e contam com a participação popular para ganhar formas e movimentos. Esse foi outro salto na história de importância cultural adquirida pela Pavulação ao longo dos anos. “Pensamos em formar os brincantes, como [forma de] ampliar a participação das pessoas. Você ensina a pessoa a dançar o boi, o carimbó, para que, quando formos cantar, elas participem ativamente. As pessoas passaram a entender a proposta, se sentiram integradas, realizaram uma identidade cultural própria e a nossa intenção de criar um território de respeito à cultura popular”, diz o músico.

Desafios

Promover o respeito constante à diversidade dos povos, marca da Amazônia, além da visibilidade que a música autoral do bioma merece, estão na rota de desafios que o Arraial coloca adiante. “Os desafios foram sempre na direção de tornar a brincadeira mais inclusiva, de termos um território onde se consegue respeitar os outros. Cada um pode ser o que quiser, dentro do seu território. Também queremos fazer com que a música, ligada à tradição, à ancestralidade, possa alçar voos mundiais. Não podemos depender do poder público para isso, é uma ferramenta, mas não pode ser a única”.

Inciativa ajuda a preservar a identidade da Amazônia

Partindo do princípio de que o atual contexto mundial promove, com uma gama de informações constantes de todos os lugares, manter uma cultura local sempre em evidência é considerada uma preservação da identidade. “Você vê se solidificando uma cultura, uma forma de se manifestar, de se vestir, de se alimentar, de viver e ser feliz. Acho que os folguedos trazem isso, como se fosse uma barca do passado que veio para o presente e queremos mandar para o futuro, porque o que faz a gente gostar do tipo de lugar que a gente vive, é o amor que temos por ele”, diz Júnior Soares.

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“É isso que a gente está mostrando; que existe, sim, um povo feliz, que acredita nas nossas manifestações, que ama o que faz e, com certeza, vai cuidar cada vez melhor deste pedaço do planeta que é a Amazônia” (Foto: Igor Mota / O Liberal)

“Então, nós pensamos sempre que, instalando esse tipo de sentimento, todos nós vamos saber cuidar melhor da Amazônia. Acho que essa é a intenção, quero dizer que aqui não é só floresta, é que aqui vive muita gente, e muita gente que tem traços culturais diversos, nos ajudaram a desenvolver a Amazônia, cada um com seu pouco, que acabou formando uma cultura própria. E é isso que a gente está mostrando; que existe, sim, um povo feliz, que acredita nas nossas manifestações, que ama o que faz e, com certeza, vai cuidar cada vez melhor deste pedaço do planeta que é a Amazônia”, afirma Júnior.

Belém é espaço plural de cultura local

O total investido em Belém no setor cultural entre 2023 e 2024 foi de R$ 26,3 milhões. Os repasses são provenientes de recursos federais, municipais e da iniciativa privada, capitaneados pela Fundação Cultural do Município de Belém (Fumbel). O fomento a manifestações como o Arraial do Pavulagem e diversas outras expressões juninas, por exemplo, somou mais de R$ 2 milhões no período. Inês Silveira, presidente da fundação, destaca que as maiores movimentações existentes na capital do Pará estão no nicho de carnaval, arraial, Círio, bienal das artes e serestas.

“Para nós, é uma fazer honra parte desse cenário em nível nacional, como uma cidade que pulsa a cultura e, nesse ano, especificamente, com incentivo tanto da Lei Paulo Gustavo, quanto da Lei Aldir Blanc [política para fomento cultural do governo federal]. A cultura é a vida de um povo, então, dizemos que potencializar, em especial a cultura popular, é potencializar a vida de quem vive em Belém, de quem está vivendo a resistência cultural da cidade. Temos influência africana, indígena, europeia, asiática… E isso, para nós, é motivo de muita alegria: potencializar, cada vez mais, as várias linguagens”, pontua Inês.

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“A cultura é a vida de um povo, então, dizemos que potencializar, em especial a cultura popular”, afirma Inês Silveira, presidente da Fumbel (Foto: Carmem Helena / O Liberal)

Desvalorização da cultura amazônica começou na colonização

A chegada dos colonizadores europeus na Amazônia é apontada pelos pesquisadores como o ponto de partida para se entender o processo de desvalorização que uma cultura local começou a sofrer. Valcir Santos, professor doutor da Faculdade de Economia da Universidade Federal do Pará (UFPA) e ativista cultural do Fórum de Culturas do Pará, explica que essa realidade é histórica, sendo reflexo também de uma imposição política e econômica que os povos originários da região experimentaram ao longo do tempo - o que criou uma dependência cultural, conceito criado pelo intelectual brasileiro Celso Furtado.

“O patrimônio cultural da população nativa foi desvalorizado nesse período, por conta de um processo ideológico e político implementado pelos portugueses. Fomos submetidos ao catolicismo e o que sobreviveu [em termos culturais] foi através do sincretismo religioso. Isso é muito forte nas religiões afro-brasileiras, como o candomblé. A dependência cultural vem a partir do momento em que as elites e as classes sociais, por domínio da colonização europeia, basicamente adotam padrões de consumo que vêm da Europa, ou de grandes centros capitalistas, como os Estados Unidos”, frisa o professor.

Valcir afirma ainda que mesmo quando um ritmo próprio da Amazônia passa a ser valorizado, só acontece se o eixo Rio de Janeiro-São Paulo o fizer primeiro. “Nossa riqueza e cultura são marginalizadas. A criatividade é podada, fica restrita a determinadas comunidades, como o carimbó, que é riquíssimo, mas onde é mais valorizado? Em algumas regiões onde a economia e a população ribeirinha são muito fortes. As cidades urbanas só valorizam o carimbó quando, por exemplo, Dona Onete começa a ser valorizada em nível nacional”, diz.

Política pública

Apesar da importância da cultura da Amazônia, ainda há carência de política pública que vise manter viva a tradição e o repasse dela. Um exemplo é o que ocorre no estado do Ceará, no Nordeste brasileiro, que passou a valorizar e documentar o trabalho dos mestres produtores de conhecimento cultural. Essa iniciativa, segundo Valcir, seria interessante para o contexto amazônico. “Temos que ter uma política permanente, que seria a segurança para manter os mestres de cultura vivos e as obras também, resgatando, registrando, em forma de documentários, vídeos e discotecas”, completa.