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RELIGIOSIDADE

Devoção floresce por todo o Pará

Não é apenas em Belém que os devotos da “Padroeira dos Paraenses” participam de Círios organizados pela Igreja Católica. Há festividades em vários municípios do interior do Estado ao longo de cada ano

Eduardo Laviano

06/10/2023

A canção "Círios", de autoria de Marco Aurélio e Vital Lima, se refere, no plural, aos muitos “outubros” que os paraenses vivenciam não só na capital do Estado. Mas, uma interpretação ampliada pode servir como lembrança de que a pluralidade de sentimentos pela Mãe de Jesus se espalha por todo o Pará, com festas que, mesmo que similares, guardam peculiaridades únicas. 

E, de fato, são muitos Círios. No município de São Miguel do Guamá, por exemplo, a festa ocorre sempre no último domingo de novembro. A assessora parlamentar Bruna Silva faz questão de estar presente sempre, pois vê em Virgem Maria a inspiração para que os humanos sejam agentes da esperança, pautados pelos princípios cristãos da doação e do amor ao próximo. 


"Vai muito além da religião e da doutrina católica. É lindo demais ver a cidade toda envolvida em uma demonstração tão grande de fé. Percebo que até quem não é praticante ou católico se sente envolvido pela magia do Círio, que é muito lindo e especial", conta. 


A preparação para o Círio dura o ano todo, com uma festividade acabando e outra já sendo planejada. A festa costuma reunir 40 mil pessoas pelas ruas, avenidas e travessas de São Miguel do Guamá, segundo estimativas da organização. E há similaridades com o Círio da Virgem de Nazaré em Belém. Em um sábado, a “Romaria Fluvial” sai da comunidade rural do Acari, abençoando os moradores mais distantes do centro d cidade e também os ribeirinhos pelas águas do rio Guamá. Na chegada, acontece a “Motorromaria”, que sai da orla da cidade e vai até o santuário onde ocorre a missa da Trasladação, outra procissão oficial. No domingo, a berlinda com o ícone da fé deixa a Igreja Matriz de São Miguel Arcanjo e é levada em caminhada por cinco quilômetros cercada por fiéis. E há ainda diversos eventos pós-Círio, com programações no Largo de Nazaré que envolvem missas campais e noites culturais.


 

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Bruna Silva, assessora parlamentar: "Maria é um canal de graça para a nossa salvação"

"Sinceramente, é difícil encontrar palavras. Acabo me expressando por lágrimas quando toco no assunto. Maria, por ser a Mãe de Jesus, traz uma representatividade significativa para a gente. Ela é um canal de graça para a nossa salvação. Um exemplo de doação sem reservas para a missão dada a Ela. O amor Dela é um exemplo, pois servir à igreja e ao próximo não é caminhada fácil, mas o que nos é dado em graças derramadas vale a pena. Um tempo atrás minha mãe passou por um problema de saúde e foi um momento que me senti muito mais apegada com Nossa Senhora de Nazaré. Me senti muito amparada e acolhida. Essa intimidade que a gente passou a ter me enche de gratidão. E isso me deixou ansiosa para, depois da recuperação da minha mãe, poder viver o Círio. E foi um Círio ainda mais especial, estive muito mais conectada com a minha mãe e com a Virgem Maria. Foi uma graça alcançada após um problema de saúde delicado e sou muito grata de agradecer por tudo nas ruas de São Miguel", conta.


Castanhal reúne cerca de 350 mil fiéis em romaria


O bispo da Diocese de Castanhal, dom Carlos Verzeletti, não esconde a empolgação na voz quando o tema é Nossa Senhora de Nazaré. Ele lembra que a maioria das paróquias ligadas à Diocese de Castanhal, no nordeste paraense, é homenagem à “Padroeira dos Paraenses”. "Temos a paróquia mais antiga, a de Vigia de Nazaré, que é dedicada à Nossa Senhora de Nazaré, assim como a de Magalhães Barata. O mesmo vale para o município de Quatipuru. E até mesmo a paróquia da cidade de Capanema, mais recente, fundada há uns seis anos atrás, é para a Virgem de Nazaré. As outras já tem mais de 100 anos. Ou seja, nosso nordeste paraense é quase todo dedicado para Ela que merece", afirma o bispo. 


Há cerca de 25 anos, quando dom Carlos ainda era bispo auxiliar da Arquidiocese Metropolitana de Belém, surgiu a ideia de um Círio para a Virgem de Nazaré no município de Castanhal. Mas, com a proximidade de Belém e a forte ligação entre belenenses e castanhalenses, dom Vicente Zico, então arcebispo metropolitano de Belém, sugeriu chamar a manifestação de fé mariana de “romaria”, que acabou também englobando a festa da diocese e da padroeira da cidade, Santa Maria Mãe de Deus. São mais de 350 mil fiéis seguindo a imagem da Virgem de Nazaré na procissão principal, que ocorre no terceiro domingo de outubro. Além das datas próximas, a conexão entre Belém e Castanhal se dá pela vinda dos peregrinos das cidades do nordeste paraense até Belém, que começam a caminhar dias antes do Círio realizado na capital paraense. 


"Nossa Senhora de Nazaré está presente em todos os lugares, não só nas grandes cidades. Ela está nas pequenas comunidades, nos locais mais distantes. E não tem outra mulher tão amada e querida no mundo inteiro e em todo o lugar. São tantos lugares dedicados a Nossa Senhora. E isso é um sinal de amor. As pessoas se identificam com a ternura e carinho Dela, recorrem ao colo Dela quando precisam. O Círio de Belém se coloca como um evento tão importante que vai deixando marcas por todos os cantos. Em cidade pequena, a história é quase sempre a mesma: tudo começa com alguém contando que foi para o Círio em Belém e voltou animadíssimo. E essa pessoa vai convencendo o povo a fazer um Círio próprio", conta.


A festa em Castanhal tem momentos marcantes, com 15 dias de programação intensa. Na manhã da sexta-feira que antecede a procissão principal, há a “Romaria de Crianças” até o santuário de Apeú. À tarde, a “Romaria dos Idosos” volta até a sede do município de Castanhal. Já na manhã de sábado, uma carreata percorre 56 quilômetros de vias públicos. Além dos automóveis, a procissão até ciclistas e motociclistas. Também no sábado há uma missa campal às 18h30. A romaria principal começa às 6h do domingo, sem corda, rumo ao Santuário de Nossa Senhora de Nazaré, por um caminho praticamente sem curvas. O encerramento se dá sempre às 11h30, para garantir que os devotos possam almoçar em casa com a família. E, no domingo à tarde, ainda tem uma romaria só para os ciclistas. 


Para dom Carlos Verzeletti, trata-se de um belo momento que emociona os devotos. Neste ano, o tema central do Círio de Nazaré de Castanhal é “Com Maria, primeira missionária, em missão eu vou”. "Estamos refletindo sobre a importância de ser missionário, estimulando cada católico a ser testemunha do Evangelho por onde vai. Não devemos esconder nossa fé. Devemos ter alegria de ter encontrado o Senhor. E ninguém melhor que Maria para nos inspirar sobre essa alegria de ser escolhida por Deus. Às vezes, parece que nossa fé é um pouco fraca, sem alegria. Mas precisamos nos animar, porque isso toca o coração das pessoas. Temos que levar as pessoas até Cristo, vivendo com alegria a nossa fé e sem esquecer ninguém", aconselha.


Círio é acompanhado por milhares de fiéis em Vigia de Nazaré


Tem cidade que carrega a devoção à Nossa Senhora até no próprio nome. É o caso de Vigia de Nazaré, que existe há 407 anos e estudiosos estimam que a cidade realiza festas e romarias para a Nossa Senhora de Nazaré há pelo menos 326 anos. Por lá, a procissão do Círio é um pouco mais curta, com duração de aproximadamente duas horas, e costuma contar com cerca de 60 mil fiéis no segundo domingo do mês de setembro. Nélio Palheta é jornalista e há décadas estuda o Círio vigiense. Ele lembra que a festa é importantíssima para o cânone católico na Amazônia, mas também afirma que falta mais investigação e documentos oficiais sobre o início da festividade. 


"Confio na versão do (jesuíta João Filipe) Bettendorf, copiada pelo Serafim Leite com base no documento que ele diz existir assinado pelo padre José Ferreira, que denota que, em 1697, já existia devoção à Nossa Senhora de Nazaré em Vigia, com ladainhas e romarias. Mas não se fala a palavra Círio. São colonos que vieram do Açores e trouxeram a imagem que até hoje é venerada. Mas a imagem é de roca, não é uma imagem esculpida no estilo barroco como a santa de Belém. Mas o modelo de lenda é o mesmo do fundamento devocional de Belém, com o achado da imagem em um braço de rio. Há outras peculiaridades em Vigia, como o carro de boi abrindo o cortejo e os foguetes, além da figura do “Anjo do Brasil”, sempre com uma jovem montada num cavalo utilizando túnica verde e amarela com a bandeira nacional", diz. 


Nélio acredita que o fato de tantos Círios de Nazaré se espalharem pelo Estado prova que a devoção amazônica é uma das mais arraigadas do catolicismo brasileiro. "Na minha opinião, a devoção se espalhou mais pela religiosidade popular do que por uma estratégia evangelizadora propriamente dita da igreja. Vigia é um ethos fundador dessa religiosidade popular juntamente com Belém", diz ele, ao lembrar que outros municípios possuem Círios bem representativos como os de Castanhal, Marabá e Capanema.


No Marajó, católicos louvam a padroeira em Soure


 

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Montado a cavalo, o devoto carrega o ícone da fé em procissão na cidade marajoara de Soure (Salomão Pinho)

Há várias procissões e romarias pelo Arquipélago do Marajó, que compreende 16 municípios do Estado do Pará. E, por lá, também existe um espaço bem guardado para Nossa Senhora de Nazaré, com o Círio de Soure. Nesse município, a festividade ocorre no segundo domingo do mês de novembro. "Vejo que a festa é bem semelhante a de Belém, mas em uma proporção menor. O diferencial mesmo, que traz um simbolismo lindo, é ver os devotos montados em cavalos e búfalos abrindo o caminho para a berlinda", conta Heloísa Martins, que é católica e atua como secretária municipal de Turismo. 


Desde 1890 os fiéis homenageiam Nossa Senhora de Nazaré, em uma tradição iniciada na localidade de Pacoval, pelo caso Aniceto e Gertrude Gomes. Ambos eram devotos e sempre realizavam novenários no mês de novembro. O casal fez a doação de um terreno para a igreja em 1888, para a construção de uma capela, e a comunidade do entorno foi crescendo, dando força para a devoção à Nossa Senhora de Nazaré com festejos inspirados no Círio de Belém. A festa foi reconhecida como patrimônio cultural imaterial do Pará pela Assembleia Legislativa do Estado.


"Estima-se que a festa mobilize cerca de 10 mil pessoas, o que é muito para a população estimada de 26 mil habitantes. É uma época festiva, pois recebemos muitos visitantes e turistas, com casas de familiares lotadas. E as reservas de hotel precisam ser antecipadas. Temos arraial e também aquele cheirinho de maniçoba que invade tudo. Me sinto feliz de ver as pessoas na rua porque a fé é tudo na vida da gente, é o que nos traz esperança. Fico emocionada de falar porque já alcancei várias graças. Quando me casei e não estava conseguindo ter filhos, fiz uma promessa para cumprir caso engravidasse. No mesmo mês, eu engravidei. A partir disso, me tornei ainda mais devota. É uma época em que a população toda manifesta a própria fé e a gente sente aquele clima de leveza no ar. Uma coisa que acho linda é ver as outras religiões absorvendo esse clima bom. Vemos alguns evangélicos doando água para os devotos, por exemplo, como se vê também em Belém. É um momento de união e fraternidade entre as pessoas. É uma felicidade além da conta. Poderia ser assim o tempo todo, né? Círio o ano todo. Quem não conhece, está convidado a vir", afirma.