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VALORIZAÇÃO CULTURAL

Farinhas com ingredientes amazônicos promovem saúde

ALTERNATIVAS - Elaborados à base de pupunha, cará branco, cará roxo, tucumã e araruta, os produtos podem substituir a farinha de trigo em várias preparações alimentícias

Ádria Azevedo | Especial para O Liberal

14/09/2025

Quando se fala em farinha, o que vem à mente? A farinha de mandioca, parte da nossa herança indígena, principalmente a famosa “baguda” de Bragança, no Pará? Ou a farinha de trigo, utilizada em massas e produtos de panificação? Pois agora podemos pensar - e consumir - outros tipos de farinhas, produzidas com matérias-primas típicas da região amazônica.
Não só produtores rurais investem na elaboração dessas farinhas, como pesquisadores se debruçam sobre os benefícios nutricionais das que são feitas à base de pupunha ou cará, por exemplo.


A Rede Bragantina de Saberes e Sabores, coletivo que reúne agricultores, associações e cooperativas de onze municípios do nordeste paraense, um do Maranhão e um do Amapá, comercializa essas farinhas especiais, todas sem glúten. Os ingredientes, além da pupunha e do cará roxo e cará branco, são o tucumã, a banana e a araruta, tradicionalmente consumidos na Amazônia. 

 


“A Rede Bragantina envolve 2.135 famílias, que cultivam sistemas alimentares agroecológicos e manejam produtos da sociobiodiversidade. O que é produzido por essas famílias é destinado ao consumo familiar e ao mercado, seja in natura ou processado, embalado e comercializado pela Associação Campo Cidade Transformar, Agregar Valores e Vidas (Atavida), uma agroindústria da economia solidária de Santa Luzia do Pará que compõe a Rede”, explica Nazaré Ghirardi, engenheira agrônoma e assessora do coletivo.

CONSUMO

 

As farinhas especiais são vendidas, em Belém, na loja da Rede Bragantina, no bairro da Pedreira. Além dos pacotes com as farinhas, no local também são oferecidos outros produtos no café da manhã, como os vegetais citados, seja in natura ou cozidos, e outras formulações, como mingaus, bolos, muffins e pães feitos sem lactose e a partir das farinhas alternativas, que se tornam substitutos para a farinha de trigo.

 

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Maria Lúcia Reis, gerente de vendas da loja da Rede Bragantina de Saberes e Sabores, mostra o mingau feito de cará roxo (Foto: Igor Mota/O Liberal)


A servidora pública Inês Silveira costuma frequentar a loja para tomar café e comprar produtos orgânicos vendidos no espaço. Ao provar o mingau de cará roxo, feito da farinha produzida com o tubérculo, a consumidora aprovou a iguaria. “Estou achando uma delícia. Imagino que tenha muitos nutrientes, mas, além disso, envolve uma memória afetiva. Meus avós maternos eram agricultores familiares e o cará era algo muito presente na nossa mesa. E hoje está muito difícil encontrar esse produto. Agora, com essa possibilidade de ter a farinha, a gente fica feliz, porque pode levar para casa. Vou experimentar o preparo em casa, inclusive por ser intolerante a lactose”, diz.


Maria Lúcia Reis é a gerente de vendas da loja e compõe a Rede Bragantina há quinze anos. Inicialmente, atuava junto aos agricultores com educação no campo, levando a proposta “Sem queima, sem corte e sem veneno”, estimulando a transição agroecológica. Agora, está responsável pela venda dos produtos da Rede, no que ela chama de “ponto de comercialização de economia solidária”. 

 

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Inês Silveira costuma aprovou o mingau de cará roxo. “Estou achando uma delícia. Imagino que tenha muitos nutrientes, mas, além disso, envolve uma memória afetiva", diz (Foto: Igor Mota/O Liberal)


“Estamos com essa nova proposta, a linha de farinhas que a gente considera especiais, oriundas de frutos e de tubérculos. Esses produtos surgiram quando mulheres da própria comunidade buscavam novas alternativas de renda. Já havia uma família, na comunidade quilombola da Pimenteira, em Santa Luzia, que produzia essas farinhas, mas nunca teve visibilidade. Então, a agrônoma Nazaré ajudou a alavancar esse projeto. Foi um outro olhar para a nossa biodiversidade”, aponta. 


“As gerações atuais às vezes nem conhecem esses vegetais. Acabam vindo para o nosso Balcão da Biodiversidade, às quartas-feiras pela manhã, provam e gostam do sabor. E tem alguns que têm a memória da infância. Essas farinhas ainda são meio que novidade, mas estão se tornando mais conhecidas, porque a gente apresenta quando as pessoas vêm aqui, dá oportunidade de degustarem, ouvirem a história e elas começam a se interessar. Temos chefs de cozinha testando receitas. Então, muitos acabam levando e voltando para comprar mais. Esses vegetais são de uma riqueza muito grande e muito versáteis”, relata Lúcia. “Nosso bioma é muito rico e temos o compromisso de valorizar isso”, completa.

 

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Farinhas de ingredientes amazônicos produzidas pela Rede Bragantina, com o apoio do Projeto Quirera, da Embrapa (Foto: Ronaldo Rosa/Embrapa)

Projeto Quirera, da Embrapa, é ajuda de peso

 

A Rede Bragantina conta com uma ajuda de peso para alavancar a produção e a qualidade das farinhas especiais: o Projeto Quirera, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Amazônia Oriental. Coordenado pela pesquisadora Laura Abreu, o projeto auxilia na implementação de adequações nos processos produtivos de comunidades no nordeste paraense, incluindo alguns quilombos. A atuação no projeto envolve escuta e construção coletiva, aliando conhecimento científico ao saber tradicional.


“Apesar de a região bragantina ser muito conhecida pela farinha de mandioca, essas farinhas são de um outro tipo, mais parecidas com a farinha de trigo, para a produção de pães, bolos, biscoitos, mingaus e sopas. São importantes para algumas dietas, como para pessoas com doença celíaca, e também são funcionais, porque têm antioxidantes naturais. Além desses diferenciais e do próprio sabor, são muito ricas em fibras. E promovem o resgate de vegetais que estavam em menor uso, como o cará roxo e o branco”, explica Laura.

PRODUTIVIDADE

 

A partir do diálogo com as comunidades, foram encontradas soluções para melhorar a produção das farinhas. “Depois de observar a forma tradicional que os produtores utilizavam, propusemos adequações, com materiais de mais fácil higienização, além de melhorias nos processos do beneficiamento, como descascamento e trituração. Também ajudamos com os equipamentos de secagem, adaptando uma secadora já desenvolvida pela Embrapa para que se tornasse de mais fácil manutenção, com peças encontradas facilmente no mercado local”, acrescenta Laura. 

 

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Yves Santos, da Universidade de São Paulo (USP), pesquisa as propriedades da farinha de pupunha (Foto: Arquivo pessoal)


Antes, a secagem era feita ao sol e, durante o período chuvoso, as perdas eram significativas. Com a secadora adaptada, além de adoção de boas práticas, as perdas foram reduzidas pela metade. A produção quadruplicou e a qualidade dos produtos aumentou. Anteriormente, eram produzidos dez quilos de farinha por semana; hoje, são 40 quilos, com padrões de higiene, qualidade nutricional e conservação.

Pesquisadores estudam potencial

 

Enquanto a Embrapa auxilia na produção das farinhas, pesquisadores brasileiros estudam suas propriedades e possíveis aplicações. É o caso de Yves Santos, que desde a graduação pesquisa a farinha de pupunha. 

 

“Nasci em Rio Branco, no Acre, e a pupunha sempre esteve inserida na minha realidade. Na época de colheita, é possível encontrá-la em cada esquina de Rio Branco, mas apenas o fruto, sem qualquer tipo de processamento que permita encontrá-lo em outras épocas do ano. Por isso, na faculdade de Engenharia de Alimentos, na Universidade Federal de Rondônia [Unir], estudei a caracterização do fruto. Já no mestrado, na Universidade de São Paulo [USP], foquei na utilização da farinha para produtos de panificação, especificamente biscoitos e cookies”, conta.

 

Biscoitos feitos por Yves Santos com diferentes farinhas de pupunha, visando otimizar suas propriedades nutricionais - Arquivo pessoal Yves Santos.jpeg
Yves Santos avaliou diferentes concentrações de farinha de pupunha em biscoitos (Foto: Arquivo pessoal)


No mestrado, Santos avaliou diferentes concentrações de farinha de pupunha nos biscoitos, desde 12,5%, mesclando com farinha de trigo, até 100% de farinha de pupunha, sem aditivos. O pesquisador também avaliou os compostos fenólicos nos biscoitos, constatando alta concentração desses compostos, que têm efeitos contra o envelhecimento celular. Agora, durante o doutorado, ainda pela USP, Santos passa um período de um ano pesquisando o produto na Universidade de Gênova, na Itália, estudando a aplicação da farinha em produtos lácteos e trabalhando com uma farinha de pupunha otimizada, com resultados melhores do que no mestrado.


Para Yves Santos, essas propriedades são vantagens em relação às farinhas mais conhecidas, como as de trigo e de mandioca. “Ela é rica em taninos e carotenoides, que são precursores da vitamina A. Além disso, têm muitas fibras, que podem ajudar no trato gastrointestinal. E a farinha de pupunha aproveita integralmente o fruto, tanto a polpa quanto a casca”, detalha.

Agregando valor com a pupunha

 

Quem também estuda a farinha de pupunha é Ladyslene de Paula, professora de Engenharia de Alimentos do campus de Ariquemes da Universidade Federal de Rondônia. Natural de Goiás, a pesquisadora se interessou pelo fruto ao chegar na região amazônica. “Conheci a pupunha quando cheguei em Ariquemes e percebi que era subutilizada, apesar de ter alto valor nutricional. Então pensei em pegar esse fruto e agregar valor a ele, com industrialização, já que é altamente perecível”, explica a docente.

 

Formulações à base de pupunha testadas pela pesquiadora Ladyslene de Paula, na Universidade Federal de Rondônia - Arquivo pessoal (1).jpeg
Ladyslene de Paula, professora da Universidade Federal de Rondônia, desenvolveu bolos, biscoitos, cookies e massas feitos de farinha de pupunha (Foto: Arquivo pessoal)


Em seu estudo, a pesquisadora diz ter tido resultados significativos não apenas na parte nutricional, mas também tecnológica. “Estabelecemos condições ótimas de secagem. Descobrimos altos teores de fibras alimentares, lipídios e carotenoides, demonstrando que é uma farinha mais nutritiva se comparada a outras, presentes no mercado”, aponta. 


Até o momento, já foram desenvolvidos bolos, biscoitos, cookies e macarrão. E a farinha, por ser um produto seco, aumenta a durabilidade do produto. “Quanto mais a gente valorizar essa cadeia da pupunha e mais formas de utilizar essa farinha encontrarmos, mais contribuímos com os agricultores familiares, inclusive na elaboração dos produtos panificáveis. O próprio produtor rural pode fazer um pão ou um macarrão e vender, aumentando a geração de renda e aproveitando integralmente esse fruto, fazendo com que dure mais e chegue a outros locais além da região amazônica”, diz a pesquisadora. No momento, Ladyslene e sua equipe buscam parcerias com empresas para produzir em escala industrial e levar os produtos ao mercado.

Cará é acessível e saudável

 

Maria Teresa Clerici, professora da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estuda farinhas de alimentos brasileiros há mais de dez anos. Mais recentemente, se voltou ao estudo de tubérculos amazônicos, como cará roxo e cará branco. Segundo ela, sua pesquisa pretende aproveitar melhor esse recurso amazônico e aumentar sua vida útil. 

 

Professora Maria Teresa Clerici (direita), da Unicamp, iniciando o processamento do cará roxão até virar farinha (1).jpeg
Maria Teresa Clerici (à direita), professora da Unicamp, em laboratório para processar o cará roxo e transformar em farinha (Foto: Arquivo pessoal) 


“A perda de carás na região é muito grande. Algumas vezes, o preço é tão baixo que acaba nem sendo colhido. O processamento em farinhas é o ideal para garantir a colheita e um preço melhor. Fazemos a desidratação, transformamos em farinha, testamos em vários produtos alimentícios e aumentamos o tempo de prateleira de seis meses a um ano. Estimulamos o consumo de produtos regionais, evitando a compra de produtos de fora”, destaca a docente. 


De acordo com a pesquisadora, o cará tem como benefícios ser um amido de digestão mais lenta, com fibras que dão saciedade, e tem muitos compostos bioativos, como os fenólicos. “Eles têm uma grande capacidade antioxidante e podem substituir outros alimentos energéticos, provendo carboidratos complexos e fibras”, pontua. “São alimentos acessíveis à população, saudáveis e que podem ser fonte de renda para os produtores”, completa”.

BIOECONOMIA

 

Yves Santos acredita no grande potencial da Amazônia para oferecer inovações na alimentação. “Como um acreano do pé rachado que sou e também como pesquisador, vejo que nossa região tem uma grande gama de matérias-primas subutilizadas, que têm poder de aplicação em produtos já existentes ou novos produtos. É extremamente importante valorizarmos isso. Quando cheguei com o fruto da pupunha em São Paulo, muitos nem sabiam o que era. Então, mostrar nossa diversidade é uma forma de valorização e também de fortalecer a bioeconomia da região”, afirma.
 

 

PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção da Liberal Amazônia é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. Os artigos que envolvem pesquisas da UFPA são revisados ​​por profissionais da academia. A tradução do conteúdo também é assegurada pelo acordo, por meio do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multissemiótica.