“Quem quiser que venha ver / Mas só um de cada vez / Não queremos nossos jacarés tropeçando em vocês”. Os versos da música “Belém-Pará-Brasil”, composta em 1992 pela banda paraense Mosaico de Ravena, brinca com um dos estereótipos sobre a Amazônia: a de que jacarés circulariam soltos pelas ruas das cidades. A canção inteira é uma denúncia sobre o desconhecimento e a desvalorização da região pelo restante do País e os imaginários historicamente construídos sobre a região, como o de “inferno verde”.
Uma pesquisa realizada pela empresa FutureBrand São Paulo, encomendada pela Associação dos Negócios de Sociobioeconomia da Amazônia (Assobio), revela que muito do distanciamento e das visões deturpadas sobre a região permanecem nos dias atuais.
O estudo, denominado “O que o Brasil pensa da Amazônia”, foi conduzido entre junho e agosto deste ano, analisando postagens on-line e promovendo grupos de discussão em diferentes regiões do País. Entre os principais achados, estão que 65% da população afirma desconhecer a região, seja por nunca ter visitado ou por só acompanhar quando ela ganha destaque na mídia.
O resultado é que o brasileiro tem uma visão idealizada, distorcida ou fatalista sobre a região. Apenas 35% disseram que a Amazônia abriga grandes cidades urbanizadas. Ela é vista como um território associado ao misticismo e ao folclórico, congelado no tempo e distante do cotidiano nacional. Para muitos, a visão é negativa: 56% a associam imediatamente ao desmatamento ilegal.
Por outro lado, há os que ressaltem a importância da maior floresta tropical do mundo, vista como mãe protetora e doadora de vida, guardiã de sabedoria ancestral e símbolo de força e resiliência. Para 64% dos participantes, a Amazônia é associada à riqueza da biodiversidade e 59% afirmam que é orgulho nacional. Já 40% apontam a ideia de sustentabilidade: que a floresta permaneça de pé, gerando riqueza.
A pesquisa foi lançada em setembro pela Assobio, durante a Climate Week, em Nova York. Com o estudo, o objetivo da Associação foi entender a visão do Brasil sobre a Amazônia e enfrentar o desconhecimento estrutural sobre a região, como forma de gerar novas narrativas que fortaleçam a sociobioeconomia local.
“Dois terços acham que não há cidades na Amazônia”
A Assobio é uma instituição que congrega 130 pequenos e médios negócios da sociobioeconomia, em quase todos os estados da Amazônia Legal. De acordo com o presidente da entidade, Paulo Reis, é um desafio explicar para o restante do País a importância dos negócios de produção sustentável na Amazônia.
“O brasileiro, de maneira geral, ainda tem muito distanciamento e desconhecimento sobre a Amazônia e mais ainda sobre a bioeconomia. Então, a gente tem uma ambição muito grande de começar a comunicar para o brasileiro a importância não só da bioeconomia, como também do apoio à uma economia na Amazônia. E a gente entendeu que o primeiro passo para isso era fazer uma pesquisa para nos indicar de que ponto estamos partindo”, esclarece.
Para Reis, alguns dos resultados chamaram bastante atenção. “Uma coisa que nos marcou muito foi que mais de dois terços das pessoas acham que não há cidades na Amazônia. Isso é grave, porque temos 30 milhões de habitantes na região, dos quais cerca de 25 milhões estão em cidades. É uma visão estereotipada. Outro ponto é que a maioria tem informação sobre a Amazônia apenas quando há cenários e situações muito ruins, como é o caso de queimadas ou de conflitos por terra. Tudo de positivo que está acontecendo ou sempre aconteceu na região não chega para o brasileiro médio. Só chegam as notícias ruins”, relata.
De acordo com o presidente da Assobio, a imagem sobre um lugar leva muito tempo para ser construída ou desconstruída. “Essa imagem sobre a Amazônia foi construída durante séculos. Vai levar um tempo para que se desfaça. Para isso, a gente precisa investir muito na comunicação”, opina.
Pesquisadora vê convivência entre o tradicional e o novo
Segundo o professor Hervé Rogez, diretor da Unidade “UFPA Bioeconomia”, da Universidade Federal do Pará, ainda persiste um imaginário sobre a região muito distante da realidade. “Presenciei isso. Fiz uma visita a campo com pessoas de Ministérios e vi que elas ficaram pasmas de ver a realidade local, que era totalmente diferente do que tinham imaginado. Isso é clássico. A pesquisa [da FutureBrand] revela que dois terços dos participantes não conhecem a Amazônia e isso acontece com os próprios pesquisadores. Tem muita gente estudando a Amazônia, conseguindo aprovar projetos, mas sem vir à região, sem conhecer, sem ir a campo”, critica.

Já Estela Brunhara, diretora de Consumer Behavior na FutureBrand São Paulo, responsável pela pesquisa, tem uma visão mais otimista. “De fato, muitos dos imaginários tradicionais sobre a Amazônia persistem. Expressões como ‘pulmão do mundo’ continuam muito associadas à floresta, assim como narrativas que misturam misticismo, riqueza natural e ameaças ambientais. Porém, a pesquisa revela que essas representações começam a ser tensionadas e enriquecidas por novas imagens que consideram o papel das comunidades, a urbanização e a inovação sustentável. Ainda não há uma completa superação dos antigos estereótipos, mas sim uma convivência entre o tradicional e o novo, que abre espaço para novos entendimentos”, afirma.
Mábia Martins, da Vila dos Pescadores, em Bragança, no Pará, integra uma iniciativa de turismo de base comunitária e tem contato constante com pessoas de outros estados. Ela confirma que muitos dos turistas que atende ainda têm percepções deturpadas sobre a região. “Eles trazem uma visão descaracterizada da Amazônia, como um ambiente totalmente exótico e intocável. Com a experiência de imersão na comunidade que proporcionamos, eles entendem que é possível usufruir dessa natureza, ter muitas experiências e viver em harmonia com ela”, conta.
Resultados foram organizados em cinco eixos
Paulo Reis explica que a pesquisa foi dividida em etapas. “Primeiro, abordamos uma percepção geral do brasileiro sobre a região. Depois, uma percepção sobre consumo e bioeconomia”, esclarece.

Estela Brunhara esclarece que os achados da pesquisa foram organizados em cinco eixos que revelam diferentes facetas. “O primeiro diz respeito ao distanciamento da população em relação à Amazônia. O segundo eixo traz à tona o imaginário ainda marcado por mitos e crises. O terceiro evidencia a ambivalência do consumo sustentável, muito presente no discurso, mas que na prática é secundário frente a questões como preço e conveniência. O quarto eixo destaca que o conceito de bioeconomia ainda é pouco conhecido. Por fim, o quinto eixo mostra o consumo dos produtos amazônicos, que apesar de restrito por barreiras como preço e acesso, tem grande potencial de crescimento”, detalha.
De acordo com a pesquisa, 42% têm interesse em consumir produtos da bioeconomia amazônica, mas 54% dizem não encontrá-los onde vivem. Além disso, apesar de 86% concordarem que a opção por produtos sustentáveis ajuda a preservar o meio ambiente, na prática critérios como preço, qualidade e conveniência pesam mais na decisão de compra.
NEGÓCIOS VERDES
Segundo Paulo Reis, frente aos desafios climáticos enfrentados na atualidade, a atividade da sociobioeconomia é fundamental. “Os negócios da área apoiam não só a manutenção da floresta amazônica, como a manutenção do modo de vida tradicional. Essa economia verde tem o potencial de mudar a nossa qualidade de vida, em uma região com indicadores de Desenvolvimento Humano tão ruins. É oportunidade para melhorar a qualidade do nosso emprego e da nossa renda”, enfatiza.

Reis detalha que, hoje, existem na Amazônia cerca de 900 negócios voltados à bioeconomia. Apenas os 130 que são associados à Assobio impactam cerca de 60 mil pessoas, incluindo as comunidades fornecedoras da matéria-prima para as empresas. “São mais de 50 mil hectares atingidos pelas nossas cadeias e R$ 50 milhões em compras já realizadas junto a essas comunidades tradicionais, da agricultura familiar, de produtos feitos a partir do bioma amazônico e, muitas vezes, no regime de agrofloresta”, relata.
O professor Hervé Rogez explica que a sociobioeconomia já representa cerca de R$ 10 bilhões de receita anual. “Desse montante, R$ 6 bilhões estão em cinco cadeias produtivas: em primeiro vem o açaí; em segundo, o cacau; e, em terceiro, a castanha. Depois vêm a banana e a mandioca. Temos muitas soluções na Amazônia, para produzir alimentos bons, saudáveis, econômicos e sustentáveis, não só para o resto do Brasil mas para todo o mundo”, defende.
“De maneira mais particular, me refiro às plantas frutíferas consorciadas em sistemas agroflorestais, envolvendo a mão de obra da agricultura familiar. Por que temos tanto gado e soja na região se um hectare de açaí consorciado, por exemplo, com cacau, rende o dobro ou o triplo de receita por ano, em comparação à soja?”, questiona Rogez.
Conhecimento muda paradigmas
Para Rogez, o melhor conhecimento sobre a região, como proposto pela Assobio, pode ajudar muito a transformar os paradigmas sobre a Amazônia. “Mas eu reforço que esse conhecimento tem que acontecer também pelos próprios amazônidas. A gente continua a ter um conhecimento maior sobre locais de fora da Amazônia do que sobre nós mesmos”, reflete.
Estela Brunhara acredita que os resultados da pesquisa indicam que é fundamental criar narrativas que aproximem a Amazônia da vida cotidiana dos brasileiros, traduzindo a bioeconomia em mensagens e com produtos com benefícios tangíveis. “É preciso fortalecer a percepção da floresta não apenas como patrimônio natural, mas como motor de desenvolvimento sustentável”, pontua.
Paulo Reis acredita no poder da informação. “Quase 80% dos participantes da pesquisa disseram ter interesse pelo consumo de produtos da sociobieconomia. Isso mostra que o conhecimento pode ser transformador, não só para o consumo da bioeconomia, como para a economia da Amazônia como um todo”, afirma.

AGENDA
Com os dados em mãos, a Assobio pretende trabalhar de duas formas. “A gente vai ter uma agenda para dentro e para fora. Para dentro, vamos fazer nosso dever de casa. Nós, associados, precisamos aprender a comunicar nosso produto sem depender apenas do discurso da sustentabilidade, que é importante, mas não é prioritário no consumo. Para fora, a gente vai começar a mobilizar financiadores para campanhas de comunicação sobre o lado positivo da Amazônia”, adianta.
“Acho que precisamos contar uma outra história da Amazônia: o quanto essa região é importante para a navegação do País; para a descoberta, uso e desenvolvimento de medicamentos; para a produção de energia; para a cultura e a gastronomia; para a soberania nacional. A gente precisa representar a região como fundamental não só para o presente, mas para o futuro do Brasil”, diz Reis.
PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção da Liberal Amazônia é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. Os artigos que envolvem pesquisas da UFPA são revisados por profissionais da academia. A tradução do conteúdo também é assegurada pelo acordo, por meio do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multissemiótica.