A morte trágica do jornalista britânico Dom Phillips e do servidor licenciado da Funai Bruno Araújo Pereira no remoto vale do Rio Javari ampliou a presença da Amazônia na agenda internacional e a pressão para a relativização da soberania brasileira na região.
Celebridades de ocasião e personalidades de um setor da “esquerda” que perdeu qualquer referência na centralidade da questão nacional aproveitam o crime brutal para apresentar a tese de internacionalização da Amazônia ou, dito de outra forma, convertê-la em um protetorado administrado pelos Estados Unidos da América, suas ONGs e seus grandes laboratórios farmacêuticos, que teriam à sua disposição a reserva de biodiversidade de nossas águas e florestas. Sou de um tempo em que gestos dessa natureza tinham um nome muito claro: traição nacional.
O vale do Javari integra a Amazônia ocidental brasileira, chamada pelo cronista e historiador Craveiro Costa, que lá viveu no início do século passado, de deserto ocidental, em precioso livro que deixou sobre a história da região.
Na verdade, a tragédia de Dom Phillips e Bruno Pereira deveria revelar uma outra tragédia, a do abandono das populações indígenas, dos caboclos, dos ribeirinhos, dos pescadores, dos seringueiros, dos garimpeiros e de cerca de 23 milhões de brasileiros que vivem na Amazônia abandonados à própria sorte. A região estará no centro do debate na próxima Conferência da biodiversidade da ONU que ocorrerá em agosto deste ano na China. Mas a Amazônia, que guarda 30% da biodiversidade do planeta, cobiçada pelos grandes laboratórios farmacêuticos dos países ricos é a mesma na qual vive a parcela da população brasileira com o maior índice de pobreza, de doenças infecciosas, de mortalidade infantil e de analfabetismo.
O Brasil revive ciclicamente o que denominei de Maldição de Tordesilhas, ou seja, nossa incapacidade de incorporar de fato o que nossos valorosos antepassados portugueses nos legaram de direito. A integração demográfica, econômica, de infraestrutura, estradas, ferrovias, infovias constitui uma aspiração ainda distante das populações do vale do grande rio.
Entre 1835 e 1840 a então província do Grão-Pará ardeu na rebelião dos cabanos, levante de indígenas, caboclos, fazendeiros e comerciantes insatisfeitos com o abandono do poder central. Os rebeldes tomaram a capital, Belém, e a muito custo foram derrotados. Não faltou entre a elite da época quem cogitasse entregar a Amazônia aos ingleses se esse fosse o preço para derrotar os insurgentes, tese que reaparece hoje sob o pretexto de proteger a natureza contra a insatisfação dos sucessores étnicos e sociais dos cabanos do século XIX.
A Amazônia é brasileira e continuará sendo tanto quanto o Brasil for capaz de oferecer a ela um projeto de desenvolvimento de sua economia e de sua infraestrutura; de proteger e integrar suas populações indígenas com direito pleno a saúde, educação, água encanada e luz elétrica em suas moradias; e de promover um inventário completo de seus recursos naturais, com participação das universidades locais, das nacionais e de estrangeiras convidadas, acompanhado de um programa de proteção desses recursos e de repressão aos crimes que atentem contra eles.