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REPRESENTATIVIDADE

O que querem os povos tradicionais da Amazônia?

Conheça as expectativas de representantes de grupos sociais das nove nações da Amazônia, reunidas em documento elaborado na capital paraense. Objetivo é apresentar aos presidentes eleitos do Brasil e Colômbia, em 2023

Alice Martins

13/08/2022

A partir de 1º de janeiro de 2023, o presidente eleito do Brasil poderá contar com um resumo dos anseios de povos tradicionais dos diferentes países onde temos a Amazônia. Isso porque receberá a Declaração Pan-Amazônica de Belém, um documento que lista 35 pontos relacionados aos desafios contemporâneos enfrentados por quem vive na região, sob a ótica de diferentes grupos sociais.

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Luiz Arnaldo Dias Campos, coordenador do Fospa. Foto: Marcos Barbosa

O documento foi lançado após o Fórum Social Pan-Amazônico (Fospa), que reuniu pessoas dos nove países da Pan-Amazônia (Brasil, Venezuela, Peru, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa e Suriname), no final de julho de 2022, em Belém (PA). A declaração ressalta especialmente os entraves e perspectivas de melhoria de futuro de acordo com a visão de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, negros e defensores dos direitos humanos e da natureza. 

De acordo com Luiz Arnaldo Dias Campos, coordenador do Fospa, o documento compila os anseios dos povos tradicionais, apresentando uma análise do momento atual da Amazônia, para que, futuramente, possa guiar governantes e organizações: “Você passa do diagnóstico para um conjunto de ações no sentido de construção de um projeto da Amazônia que respeite seus povos”, diz. Por isso, um dos passos é apresentar ao presidente eleito, não apenas do Brasil, mas também da Colômbia, Gustavo Petro, que foi eleito em junho deste ano e assumirá o cargo em janeiro de 2023.

Dentre os pontos elencados na declaração, estão a necessidade de maior comprometimento dos governos dos países pan-amazônicos contra a crise climática, com medidas contra o desmatamento, a degradação e o aumento das emissões de gases poluentes. Além disso, o documento ressalta, por diversas vezes, a importância da valorização dos conhecimentos dos povos tradicionais e a proteção de seus direitos. Também inclui como prioridade a promoção da igualdade de gênero, com ações de combate à violência contra a mulher, por exemplo. 

Outra ênfase da declaração é a visão da necessidade de estabelecimento de um modelo econômico, político e social mais sustentável, implementando e valorizando a produção agrícola e florestal diversificada, com agroflorestação, agroecologia, projetos para produção e consumo local, manejo comunitário dos bens comuns, ecoturismo comunitário, projetos de energia alternativa, dentre outras iniciativas de preservação da biodiversidade.

Dentre os participantes que elaboraram a declaração estão mais de 40 organizações, como as coordenações de organizações indígenas da Amazônia, a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), a Assembleia Mundial pela Amazônia (AMA), a Articulação de Mulheres Brasileiras e o Centro de Defesa do Negro no Pará.  

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 Indígenas, quilombolas, ribeirinhos e representantes de diferentes sociais participaram das atividades do Fospa. Foto: Marcelo Lelis

Ações têm sinergia com países de fora da Amazônia

Além da apresentação da declaração aos presidentes eleitos, a organização do Fospa pretende usar o documento como guia para outras ações. Por meio da Assembleia Mundial pela Amazônia, o comitê do Fórum planeja participar da mobilização no Chile acerca do referendo do próximo dia 04 de setembro, para votação da proposta de nova constituição daquele país. Dentre outras mudanças, o documento evidencia uma relação interdependente entre a natureza e as pessoas, considerando esse um “conjunto inseparável”. Por meio do novo texto, o “Estado reconhece e promove o bem viver como uma relação de equilíbrio harmônico entre as pessoas, a natureza e a organização da sociedade”. 

O projeto de se ter uma nova constituição no país nasceu a partir das reivindicações dos protestos que tomaram as ruas do país, em 2019, em busca de melhores condições de vida. “A nova constituição do Chile está de acordo com os anseios compilados na declaração do Fospa e, mesmo não fazendo parte da Amazônia, caso seja aprovada poderá abrir um bom precedente para os países amazônicos para também reconhecerem a natureza como um sujeito de direito”, explica Luiz Arnaldo.  

A importância da Amazônia para o planeta 

Apesar da declaração pan-amazônica destacar a importância dos povos tradicionais terem autonomia e independência para gestão de seus territórios, uma questão levantada dentro do Fospa é a responsabilidade de todo o planeta na preservação desse bioma. “A Amazônia tem tido uma visibilidade muito grande nas discussões globais. Na  Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima de 2021 (COP26), por exemplo, a região teve muito destaque nas discussões. Hoje em dia, está muito claro que a Amazônia é um ambiente fundamental para a preservação da vida na Terra”, acredita Luiz Arnaldo.

A  coordenadora do Laboratório de Gases do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Luciana Gatti, foi uma das palestrantes da programação do Fospa e alertou sobre o papel do mundo todo na preservação da Amazônia, para combater a crise climática. “A Amazônia preservada funciona como um protetor contra as mudanças climáticas, absorvendo o carbono, ajudando a produzir chuva e reduzindo a temperatura, não só para gente, mas para o planeta todo”, enfatizou. “Isso é de interesse mundial. Precisa estar refletido nos acordos comerciais, nas políticas de preservação da Amazônia,  nos investimentos”, complementou.

Parlamentares - Pensando também na necessidade de cooperação global para a proteção da natureza, foi lançada durante o evento a Frente Parlamentar Global pelos Direitos da Natureza. Com assinatura de parlamentares de vários países da Amazônia que estavam presentes, a frente propõe a articulação política sobre o tema em todo o mundo e busca agregar mais deputados, vereadores e membros do executivo no decorrer do tempo.

Alta participação surpreendeu organizadores do Fórum 

O Fospa é  um movimento colaborativo que reúne participantes dos noves países amazônicos para discutir temas geopolíticos, culturais, direitos humanos e meio ambiente. Além dos grandes eventos, que são realizados a cada dois anos, desde 2002, a organização também atua de forma permanente, promovendo o debate das pautas da região no âmbito mundial, como a participação no Fórum Social Mundial (FSM).

Belém foi a sede da primeira edição do Fospa e, agora, 20 anos depois, recebeu a 10ª edição, entre os dias 28 e 31 de julho de 2022. “Estamos materializando um sonho que imaginávamos 20 anos atrás, no 1º Fospa, quando propusemos o tema de ‘Outro mundo possível’. Hoje, vemos que cada vez mais pessoas entendem essa visão”, diz Luiz Arnaldo. 

Segundo o coordenador do Fospa, o evento reuniu cerca de 15 mil pessoas, três vezes além do esperado, mesmo diante das limitações do contexto da pandemia de covid-19. “O que sentimos foi como os povos amazônicos compartilham e, cada vez mais, há uma consciência de que há um interesse em comum. Avançamos em conceitos, como a importância da floresta enquanto elemento fundamental decisivo para a continuidade da vida na terra”, declara.

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Fórum reuniu participantes de todos os países da Pan-Amazônia. Foto: Marcelo Lelis

Participantes tão diversos quando os povos que representam

As discussões que resultaram na Declaração Pan-Amazônica de Belém envolveram pessoas de diferentes grupos sociais e etnias, durante quatro dias. Debates que reuniram, na Universidade Federal do Pará (UFPA), indígenas, quilombolas, ribeirinhos, negros, políticos, ambientalistas, representantes de entidades de defesa dos direitos humanos, estudantes, profissionais liberais, dentre outros. 

A deputada federal paraense Vivi Reis, participou de mesas e rodas de conversa durante a programação e acredita que esse foi um importante espaço de articulação, em nível internacional. Ela enfatiza a importância de se levar adiante os debates ali feitos. “Nós, enquanto estados que compõem a Amazônia, precisamos estar bem articulados entre nós. O Fospa é um dos fóruns que precisam estar muito integrados a outras frentes de atuação. Não podemos deixar as ações ali pensadas só no evento, precisamos levar para nossa rotina, colocar as soluções em prática”, ressalta.

Antônia Gomes, empregada doméstica aposentada que participou de todos os dias do evento, afirma que esse foi um momento de intercâmbio cultural, além de aprendizado. "Foi uma oportunidade de ampliar nossa visão do que é a Amazônia e entender melhor a realidade da região. Enquanto debatemos diversos assuntos, fomos aprendendo a cultura de outros povos e de outros países", reflete.

Para Antônia, o Fospa serviu ainda de incentivo para retomar o plano de ingressar em uma universidade, com o objetivo de aperfeiçoar seus conhecimentos e continuar contribuindo com o desenvolvimento da Amazônia. "Nós, mulheres, temos que ocupar mais espaços como esse e, assim que acabou o Fórum, já comecei a compartilhar os aprendizados com minhas colegas e comunidade. Quanto mais participamos dessas discussões, mais podemos conquistar nossos direitos e melhorar a região", acredita.

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Emmanuel Tourinho, reitor da UFPA, destacou a importância de ter uma universidade de excelência, que sirva aos povos da Amazônia. Foto: Divulgação Fospa

Por uma universidade que faça a diferença para os povos da Amazônia

O Fórum também foi palco da construção de parcerias entre organizações, como o compromisso de cooperação firmado, diante dos presentes, entre a Prefeitura de Belém e a Universidade Federal do Pará (UFPA). A ideia é unir forças para promover mais espaços de discussões como o Fospa, e, também, para dar estrutura e continuidade a ações em prol da Amazônia. “Queremos uma universidade que faça a diferença para os povos da Amazônia. Queremos, obviamente, uma universidade de excelência, mas de nada serviria uma universidade de excelência na Amazônia que não servisse aos povos da Amazônia. Queremos trabalhar em sintonia com o que são as aspirações, as expectativas e as lutas dos povos da Amazônia”, declarou o reitor da UFPA, Emmanuel Tourinho, em discurso de encerramento do evento. A Universidade foi a sede do Fórum, em julho.

Veja, abaixo, um resumo com dez destaques da Declaração Pan-Amazônica de Belém:

 

- Modelo político, social e econômico que reconheça e respeite os territórios e o pleno exercício dos direitos dos povos amazônicos e dos direitos da Natureza;
- Recuperação, valorização e proteção do conhecimento tradicional e formas ancestrais de organização dos povos tradicionais, para o cuidado e gestão da água e a proteção dos territórios;
- Produção agrícola e florestal diversificada: agroflorestação, agroecologia, projetos para produção e consumo local, manejo comunitário dos bens comuns, ecoturismo comunitário, projetos de energia alternativa, dentre outras iniciativas de preservação da biodiversidade;
- Maior comprometimento dos governos dos países pan-amazônicos contra a crise climática, com medidas contra o desmatamento, a degradação e o aumento das emissões;
- Que seja garantido os direitos de povos indígenas, quilombolas, camponeses e costeiros de se auto gerenciarem, de acordo com suas próprias normas;
- Garantia do direito de consulta e de participação dos povos indígenas e tribais na tomada de decisões, conforme previsto na Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), aprovada em 1989;
- Inclusão de ações de promoção de igualdade de gênero e de combate à violência contra a mulher;
- Declaração do estado de emergência climática na região Pan-Amazônica e zelar pelo seu cumprimento a fim de permitir sua restauração ativa e a proteção de sua biodiversidade;
- Promoção da educação, pesquisa e comunicação como pilares dos processos de transformação nos territórios da região Pan-Amazônica
- Articulação para realizar campanhas permanentes, locais e globais sobre os interesses dos amazônidas para a região.

Você pode conferir o texto da Declaração, na íntegra, em português e inglês, no site do evento