In the North region, only 60% of the inhabitants have full access to drinking water (Tarso Sarraf)
CRISE HÍDRICA

O paradoxo da água na Amazônia

Na região dos rios gigantes, a abundância da água é tão intensa quanto o desperdício dela. Pesquisadores apontam caminhos para a gestão do precioso recurso

Eduardo Laviano

17/03/2023

Instituído em 1992, o Dia Mundial da Água - comemorado em 22 deste mês - é uma tentativa de conscientizar a humanidade sobre o uso dos recursos hídricos com responsabilidade. 

Não é à toa: na Amazônia, por exemplo, a abundância de água é tão grande quanto o desperdício dela. 

Na região Norte do Brasil, onde estão sete dos nove estados da Amazônia Legal, o índice de desperdício saltou de 46,5% em 2014 para 55,5% em 2018, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. 

Significa que a cada 10 litros de água distribuídos pelas empresas responsáveis pelo abastecimento, estatais ou privadas, apenas 4,5 litros chegam de fato nas torneiras, enquanto o resto fica pelo caminho por problemas estruturais de saneamento básico. É um número bem maior que a média nacional, de 38,5%.


Dados de 2021 do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional mostram que somente 60% dos habitantes da região Norte do Brasil possuem acesso pleno à água potável. A média nacional chega a 84,2%, enquanto nas regiões Sul e Sudeste, o índice de abastecimento passa dos 91%. 

São números que estabelecem um paradoxo, de acordo com Carlos Alexandre Bordalo, geógrafo e doutor em Desenvolvimento Sustentável. 

Segundo ele, a má gestão dos serviços de abastecimento em uma região tão rica em água doce e potável acentua vulnerabilidades sociais. 

"Dados de vários relatórios de disponibilidade hídrica mostram cidades da Amazônia com menos acesso a água potável do que cidades no Nordeste do Brasil, por exemplo. Em alguns municípios do Amazonas e do Amapá, o desperdício chega a 70%. Ou seja, são municípios onde há pouca preocupação em investir em infraestrutura para que a água chegue a todos", argumenta ele, que atua como professor na Faculdade de Geografia e Cartografia da Universidade Federal do Pará.
 

Carlos Alexandre Bordalo.jpeg
Má gestão de serviços de abastecimento acentua vulnerabilidades sociais, afirma Carlos Alexandre Bordalo

Bordalo aponta também que há diferentes níveis de escassez de água: além da escassez hídrica, que é não acessar água corrente em casa, muitas cidades da Amazônia sofrem com a escassez relativa, que é não ter acesso à água ao longo de 24 horas por dia. 

"Pensamos que isso é um problema do interior, mas é uma situação comum em áreas urbanas, como em Belém, Ananindeua, Marituba e Santarém. E há ainda a escassez de água de qualidade, quando ela não chega dentro dos padrões de potabilidade", diz.


O pesquisador aponta vários gargalos: há a falta de investimentos robustos em regiões mais carentes e a aplicabilidade da Política Nacional de Saneamento Básico, estabelecida em 2007, ainda é baixa.

 Segundo ele, é preciso cobrar melhor governança sobre os recursos hídricos na Amazônia. Ele lembra que, todos os anos, os dados do Instituto Trata Brasil sempre posicionam cidades da Amazônia entre as piores quando o assunto é saneamento básico. 

Em 2022, por exemplo, o topo da lista foi dominado pelas cidades da região: Macapá, no Amapá, aparece em primeiro, seguida por Porto Velho, Santarém, Rio Branco, Belém e Ananindeua. 

"É um paradoxo decepcionante e vergonhoso para a Amazônia brasileira. Água é um direito, não um favor", diz Bordalo.

Mercadoria

A água enquanto elemento existe na natureza há bilhões de anos, mas a ideia dela como prioritariamente um produto que deve ser vendido é invenção humana e até que recente, mas já dura pelo menos 500 anos. 

A Revolução Industrial, no século 18, acelerou o processo e a água entrou de vez no sistema de produção capitalista e se tornou um recurso com valor, mas também sem nenhum tipo de controle em relação à própria finitude.


Segundo a pesquisadora Nírvia Ravena, demorou para a humanidade entender que a água e a utilização dela fazem parte de um sistema complexo e interdependente, que envolve o clima, as florestas e as espécies que habitam a Terra. 

Ela destaca que o conceito de finitude da água era mais presente no Oriente e no continente africano, onde a escassez era mais comum. 

"Até a década de 70, nos Estados Unidos, era um problema absolutamente invisível até do ponto de vista institucional. Mas os estudos acadêmicos sobre o tema foram ganhando força, assim como o movimento ambientalista. Isso jogou luz no uso da água, na agricultura, na questão do consumo consciente. E passou a ser visualizado com mais força por conta do impacto das mudanças climáticas", argumenta ela, que é doutora em Ciências Políticas e professora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará.

WhatsApp Image 2023-03-17 at 11.58.23.jpeg
Muitas comunidades ribeirinhas sofrem por falta de água potável (Tarso Sarraf)


Ela acredita, porém, que a Amazônia deveria ser melhor tratada neste debate, já que ela é um elemento-chave no sistema global de equilíbrio do planeta, especialmente quando o tema é a água e a distribuição de chuvas. 

O assunto, porém, só ganha força quando os noticiários apontam que a região Sudeste do Brasil passa por uma crise hídrica. 

"As origens dessas crises podem ser naturais, mas há também crises não naturais, provocadas pelo uso da agricultura e da indústria. Aqui na Amazônia, a dependência da região para a geração de energia elétrica para todo o País fez com que, em 2014, a população do Lago de Tucuruí experimentasse um cenário acentuado de vulnerabilidade hídrica. Ou seja, a Amazônia é depositária do maior volume de água doce do planeta, e, no entanto, a governança dos recursos hídricos na região tem sido falha. Isso ressalta as diferenças regionais, com a região Sudeste fazendo um uso perdulário desses recursos, enquanto a região amazônica produz energia hidrelétrica submissa às necessidades do resto do País e enfrentando vulnerabilidades", diz.

Agências regionais

Ravena aponta um erro que o Brasil cometeu em relação à regulação da água: segundo ela, a criação da Agência Nacional das Água deixou a gestão dos recursos hídricos brasileiros muito centralizada em Brasília. 

De acordo com a pesquisadora, o ideal seria que cada bacia hidrográfica possuísse uma agência própria para uma gestão mais próxima e conectada com os povos que dependem da água de cada região. 

Ela lembra que a população, especialmente povos originários e ribeirinhos, devem ser coprodutores das políticas públicas. E também avalia que os interesses do capital privado são sempre prioritários na formação das leis, o que fomenta um comportamento predatório em relação à água e à floresta.


"Acredito que a retomada da discussão das agências de bacias seria muito importante. Por outro lado, não acredito que possa haver esse planejamento estratégico e eficiente se não ouvirmos as populações tradicionais. Sem isso, vai ficar muito difícil evitar a intensificação das frequências das crises hídricas. A qualidade do volume de água doce já está comprometida. Já há quilombolas no Acará sem água, dezenas de regiões da Amazônia sofrendo com água poluída. É um cenário que precisa de reversão imediata", afirma Ravena.


Revitalizar rios urbanos é desafio urgente

A Amazônia é uma região grande, não tão povoada e pouco desenvolvida, com características ambientais e topográficas diversas. 

Tudo isso se reflete na qualidade da água, segundo Sávio Ferreira, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. 

Ele lembra que rios diferentes possuem águas bem diferentes. Há água preta, do rio Negro, com muita matéria orgânica e substâncias úmidas, quase destilada e pobre em sais. 

Há água do rio Solimões, com muitos sedimentos, mas praticamente neutra e repleta de nutrientes e substância. 

E há também a água do rio Tapajós, bem mais ácida que as outras, mas super nutritiva. 

"São perfis diversos, mas, no geral, nossa água mantém boas características quando vindas dos rios. O grande problema na Amazônia é que aqui temos grande parte da população utilizando água subterrânea, com os nossos cursos urbanos contaminados", diz.

WhatsApp Image 2023-03-17 at 11.58.22.jpeg
Cidades amazônicas mais populosas, como Belém,  passaram a crescer de costas para os rios (Tarso Sarraf)


Ferreira rememora que a maioria das cidades se desenvolve por conta dos rios, mas que na Amazônia as grandes massas urbanas se desenvolveram de costa para eles. 

Em Manaus, por exemplo, muitas pessoas utilizavam os rios urbanos como parte do dia a dia, seja para serviços, transporte, recreação ou consumo. A chegada da Zona Franca incrementou um crescimento urbano desordenado e a cidade foi se expandindo e os rios urbanos foram sendo poluídos até virarem esgotos a céu aberto. A situação é idêntica em Belém.


"O saneamento aqui é pouco para a demanda. Os cursos de água precisam ser restabelecidos às suas condições originais para atender a população. Não faltam exemplos pelo mundo, seja na Coreia do Sul ou até no próprio rio Tâmisa, em Londres. Rios urbanos com características originais restauradas e que possuem até peixes. Sabemos que o custo é muito elevado, mas a sociedade precisa encarar os cursos da água nas cidades como benefícios, não como esgoto a céu aberto. Tudo foi sendo degradado e a revitalização é um dos grandes desafios para combater a crise hídrica e preservar a água", conta Ferreira

Hidrelétricas

O jornalista Thiago Medaglia comanda o Ambiental Media, projeto que alia jornalismo e ciência e que

foto de rosto.jpg
Thiago Medaglia ressalta que 20% das microbacias da Amazônia sofrem impacto considerado alto

 desenvolveu o Índice de Impacto nas Águas da Amazônia. 

Segundo os dados do projeto, das 11.216 microbacias da Amazônia, 2.299 (20%) têm impacto considerado alto. E as cinco mais impactadas possuem hidrelétricas. 

São regiões também frequentemente ligadas ao garimpo e a mineração, com crescentes relatos de pescadores sobre oferta cada vez menor de peixes para consumo e comércio, o que afeta a segurança alimentar de ribeirinhos e meios de subsistência. 

Segundo o mesmo índice, das 1.146 microbacias com impacto alto, muito alto ou extremo, 478 sofrem também com a mineração (21%). 

"Quando os dados são sobrepostos, percebemos o quanto estão interligados. Não existe nada mais impactante para um rio e para a comunidade do entorno do que uma grande barragem", diz Medaglia.


Chuva é caminho para reaproveitamento em larga escala

Em 2007, Ronaldo Mendes se deparou com uma cisterna de aproveitamento de água de chuva na Ilha Grande, nas proximidades do município de Barcarena, no Pará. 

Era uma cisterna de concreto, que ficava no chão mesmo e era abastecida diretamente de um telhado. 

A água acumulada ali era usada por diversas famílias da ilha e até por uma escola. A curiosidade ficou tatuada na memória dele e o interesse pelo tema só cresceu com o passar dos anos. 

Hoje, Ronaldo não só é professor do Núcleo de Meio Ambiente da Universidade Federal do Pará como também preside a Associação Brasileira de Captação e Manejo de Água de Chuva, entidade dedicada ao estímulo do reaproveitamento da água.


Mendes se juntou a outros pesquisadores do meio acadêmico na criação do Grupo de Pesquisa Aproveitamento da Água da Chuva na Amazônia, que foi se tornando mais e mais próximo da comunidade, promovendo melhorias nas cisternas a partir de pesquisas sobre materiais, estrutura e qualidade da água. O grupo de pesquisa também instalou uma cisterna na Ilha do Murutucu.

WhatsApp Image 2023-03-16 at 15.10.02.jpeg


"Muita gente aqui na Amazônia não tem disponibilidade de água potável. E a água da chuva é fácil de potabilizar. Na época, recomendamos a filtragem e desinfecção e uso do cloro e fervura. A partir dali descobrimos que aquilo poderia resolver o problema de milhões de pessoas na Amazônia, já que a maioria das regiões tem pluviosidade grande ao longo do ano. Isso poderia ajudar algumas regiões que são mais secas, como o oeste do Pará, já que a água pode ficar armazenada para os meses menos chuvosos. É o que já ocorre no Nordeste brasileiro e em larga escala, onde alguns municípios chegam a 10 meses de acesso a água via cisterna", sublinha.


Ronaldo elenca diversos benefícios para a prática, já que a água da chuva pode ser utilizada em diversas atividades domésticas. 

Além disso, evita que ribeirinhos precisem se deslocar até os rios carregando água e também substitui a instalação de bombas no rio. 

As comunidades também economizam dinheiro, pois compram menos água. Se sobram vantagens, faltam incentivos. Ele advoga que os governos se juntem para investir em um programa amplo de construção de cisternas na Amazônia. 

A sociedade civil tem contribuído como pode e há projetos bem sucedidos ao longo da Amazônia, como o Sanear Amazônia, que já beneficiou 2.800 famílias, e o Projeto Cisterna Escolar, em Abaetetuba, no Pará, que instalou cisternas em 72 escolas urbanas e rurais.


"A Universidade Federal Rural da Amazônia também tem um projeto na Ilha das Onças e o Instituto Mamirauá também atua com cisternas no Amazonas. São experiências isoladas que precisam se expandir com ajuda do governo. É um belo exemplo de tecnologia social, voltada não para lucrar em cima da água, mas sim focada no bem-estar social", diz o pesquisador.