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MOBILIZATION

Comunidades ajudam a preservar os quelônios

É com o apoio de famílias ribeirinhas que projetos ambientais garantem a sobrevivência de espécies ameaçadas de extinção

Eduardo Laviano

29/09/2023

Seja tartaruga, jabuti, iaçá ou tracajá, os quelônios da Amazônia sempre chamaram a atenção do mundo pelo elevado grau de diversidade de espécies, com aparências e comportamentos diversos, bem como pela profusão de animais nas praias e rios da região. 

A notícia se espalhou pelo mundo em 1859, quando o naturalista e explorador inglês Henry Bates Miller saiu em expedição pelo rio Solimões e descreveu a relação de subsistência dos amazônidas com os animais, relatando que todas as casas tinham, no quintal, um tanque com um estoque de quelônios, utilizados como alimentos.

A estimativa é que cerca de 20 mil fêmeas de tartarugas adultas eram exterminadas anualmente na região e que 48 milhões de ovos eram coletados das praias a cada ano. Passadas 16 décadas desde os escritos de Miller, a realidade hoje é diferente: as comunidades ribeirinhas são agentes de proteção aos quelônios e conservação de espécies ameaçadas de extinção.

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Filhotes de quelônios são soltos na natureza com a ajuda de voluntários do projeto "Pé-de-pincha" (MRN)

O professor Paulo Andrade, da Universidade Federal do Amazonas, trabalha há 25 anos com a conservação da fauna amazônica, com foco nos quelônios. Ele conta que protegê-los não era fácil mesmo no século XIX. 

Afinal, além de ser uma das poucas opções de alimento em uma época que a Amazônia estava ainda mais isolada do que hoje, havia ainda a extração do óleo dos ovos de quelônios, utilizado como um tipo de "querosene" colocado em lamparinas. 

"Se tornou algo importante na economia da região e áreas de desova desapareceram, além de muitos animais terem sido extintos. Mas, em 1967, o governo brasileiro criou a lei de proteção à fauna, proibindo a captura e comercialização de animais oriundos da natureza. É quando começa o processo de proteção e fiscalização que freou a matança generalizada", afirma Paulo.


ALIMENTAÇÃO


Mas, a lei não inibiu por completo o tráfico e comercialização ilegal de quelônios. Por consequência, pelo menos 1,7 milhão de quelônios ainda são consumidos por ano no Estado do Amazonas, segundo estimativa de um estudo conduzido por pesquisadores ligados a universidades dos Estados Unidos e do Reino Unido, em 2021. Uma das autoras da pesquisa, a pesquisadora Willandia Chaves, observou à época da divulgação do estudo que famílias mais pobres em cidades têm menor probabilidade de incluir as tartarugas na alimentação. 

"Os quelônios estão passando a ser algo para quem pode pagar. É um comércio muito valioso por conta do preço, que aumenta cada vez mais”, afirma ela, ao lembrar que em Manaus, a capital amazonense, a unidade de tartaruga chega a custar R$ 1 mil, o que estimula a captura ilegal e o tráfico de animais.

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Paulo Andrade, da Universidade Federal do Amazonas (Arquivo pessoal)

Paulo sublinha que proteger os quelônios é de fundamental importância para a conservação da Amazônia. 

Isso é porque os animais de casco são a base da cadeia alimentar dos ecossistemas aquático e terrestre, com boa parte das espécies se alimentando de ovos e filhotes, fontes ricas de proteínas e de energia amplamente disponíveis em período de verão e seca.

Outro papel desempenhado pelos quelônios é o de dispersor de sementes, já que eles se alimentam de frutos e se deslocam por longas distâncias. 

"Sem contar o valor cultural imprescindível, que também está relacionado ao fato deles serem alimentação para populações indígenas ancestrais, ribeirinhos e população humana em geral nas regiões de várzea e igapó", argumenta.



"Pé-de-pincha" solta mais de nove milhões de espécimes nas águas amazônicas


O professor Paulo Andrade lembra como se fosse ontem. Em 1999, as comunidades começaram a procurar a Universidade Federal do Amazonas para se informar sobre como proteger os quelônios da região. 

Começava aí uma jornada de capacitação de agentes ambientais voluntários, inicialmente voltada para sete comunidades. 

Hoje, o projeto denominado "Pé-de-pincha" está presente em 122 comunidades e já soltou mais de nove milhões de quelônios nas águas amazônicas. O processo consiste em identificar ovos de quelônios em áreas potencialmente perigosas, onde eles podem ser atacados ou coletados por traficantes. 

Depois, são transportados para um ambiente protegido com espaçamento de 50 centímetros entre cada ninho. Então, a comunidade registra o local da retirada, o destino de cada ninho e a quantidade de ovos. 

As informações são enviadas para o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

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Crianças são educadas a respeitar e proteger as espécies de quelônios em comunidade ribeirinha (MRN)

Após essas etapas, é hora de esperar 60 dias até a eclosão dos ovos. Mas nada de despejar os recém-nascidos na água. 

A comunidade leva cada um deles até os berçários, onde ficam por dois meses, para que cresçam saudáveis e fortes e tenham mais chances de sobreviver na natureza. 

Para se ter uma ideia, a chance de sobrevivência de um quelônio recém-nascido jogado na natureza é de 1% em áreas de várzea e de 5% nas áreas de igapó. Mas os que crescem assistidos em berçários possuem taxas de sobrevivência que chegam a 31%. Após esse processo, é hora de se despedir dos filhotes, que são soltos. E a soltura de quelônios é um verdadeiro evento em diversas comunidades amazônicas.


VOLUNTARIADO


"Começamos em uma época em que a ideia de desenvolvimento sustentável estava efervescente por conta da Rio 92, com órgãos ambientais focados na co-gestão. Foi quando surgiu a figura do agente ambiental voluntário, que mobiliza a comunidade para questões locais, cumprindo um papel de educador ambiental e fiscalizador. Surgiram ainda os acordos de pesca entre as comunidades e com participação efetiva na gestão de recursos em cada localidade. Inicialmente foi difícil, já que há muitos interesses envolvidos pela pressão da comercialização, mas as comunidades foram aprendendo técnicas para proteger os animais. O melhor é que se pegarmos todas as áreas de proteção de quelônios, boa parte está fora de unidades de conservação, o que mostra a força do interesse das comunidades em proteger este recurso, independente de governos. As comunidades entendem que é um recurso importante na vida do ribeirinho. Se os quelônios são depredados, o ribeirinho deixa de ter uma possibilidade de fonte acessível de alimento. As comunidades tomaram consciência disso, se sensibilizaram e a demanda é alta de novas comunidades que querem iniciar esse trabalho de proteção", conta Paulo. 


"É comum denunciar a captura ilegal e ninguém aparecer"


O apoio das iniciativas privadas que atuam na região também é importante. A Mineração Rio do Norte (MRN), por exemplo, é parceira de longa data do projeto "Pé-de-pincha". 

Genilda Cunha é analista de relações com a comunidade da empresa e avalia o engajamento das famílias como inspirador. 

"É muito bom ver todos unidos para promover melhorias nas relações entre o homem e natureza", afirma Genilda.

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Em Oriximiná (PA), Antônio Joaquim da Costa distribui alimentos para moradores que vivem em região atendida pelo “Pé-de-pincha” (Arquivo pessoal)

Antônio Joaquim da Costa que o diga. Ele coordena o projeto na comunidade Santa Maria Goreti, no lago Aimim, no município de Oriximiná, no oeste paraense. Ele é encantado pela preservação dos quelônios, mas nem sempre as coisas foram assim. 

"Eu era um caboclo muito perigoso, que invadia as áreas de quelônios. Pegava onze, doze bichos por noite. Mas da feita que a gente começa a aprender a preservar, a gente cria amor pelos bichos. Hoje, estou do outro lado, pois fico direto vigiando. Depois que conheci o projeto, me tornei coordenador voluntário e lá se vão 23 anos. Agora, em 2023, já soltamos 63 mil bichinhos na natureza", comemora Antônio.

O coordenador relata que o interesse crescente da comunidade pela preservação é porque nunca se viu tantos quelônios na região como agora. Ele acredita que sem o projeto de preservação, mais espécies já teriam sido extintas no município. Apesar do engajamento da população, Antônio avalia que a fiscalização do poder público poderia ser mais ampla. 


"É comum denunciar a captura ilegal e ninguém aparecer. É uma pena, pois há ameaças de todos os lados. Mas as pessoas que moram aqui já estão conscientizadas sobre o assunto, nem precisa mais a gente ficar falando. Eles mesmos ligam, avisam quantos ovos tem. A gente vai levando como pode e a empresa é muito parceira. A fiscalização do poder público deveria ser mais severa. Mas ver tantos resultados positivos fez as pessoas acreditarem que é preciso defender o projeto, sabe? E a proteção vai além dos quelônios, pois tem aparecido mais tambaqui e pirarucu por aqui. A nossa esperança é acreditar que o projeto vai continuar até as futuras gerações", afirma. 


CURIOSIDADE


Mas por que a denominação de "Pé-de-pincha"? Paulo Andrade explica: os quelônios da região possuem unhas, diferente das tartarugas marinhas. Por isso, o nome científico deles começa com podocmenis, das palavras gregas podo (pés) e knemis (uma espécie de armadura que envolvia os pés e que foi ganhando a conotação de "unha" com o passar do tempo). E eles andam na ponta das unhas, deixando pegadas que se assemelham às marcas de uma pequena tampa de metal na areia. E lá pela divisa entre os Estados do Amazonas e do Pará, as tampas de metal das garrafas de refrigerante são chamadas de "pinchas", um apelido comum para os quelônios na região. 



No Acre, o "Quelônios do Juruá" ganha apoio


 

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Thiago Itacaramby criou jogo educativo focado na educação ambiental (Arquivo pessoal)

Quando Thiago Itacaramby venceu um edital do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação focado em empreendimentos inovadores, sabia que queria contribuir de alguma forma para a preservação do ecossistema amazônico. 

Nasceu assim o "Amazônia Viva Game", um jogo educativo focado em conscientização ambiental e que, em outubro, será apresentado na "Brasil Game Show", maior feira de videogames da América Latina. 

"O jogo é imersivo, se passa na floresta, com efeitos sonoros e todo em 2D, ensinando sobre as nossas espécies. A previsão é lançar o jogo oficialmente em 2024 e logo depois traduzir para o inglês", conta. O objetivo é nobre. A ideia é arrecadar recursos para o projeto de preservação "Quelônios do Juruá", capitaneado pela "SOS Amazônia" desde 2003 e que envolve mais de 50 famílias ribeirinhas no Estado do Acre, que vivem na fronteira com o Peru. 


AMEAÇAS


O biólogo Luiz Borges, que é doutor em ecologia e assistente de projetos da "SOS Amazônia", lembra que as espécies iaçá (Podocnemis sextuberculata) e tracajá (Podocnemis unifilis) estão ameaçadas de extinção e foram classificadas como vulneráveis. 

Já a tartaruga-da-Amazônia (Podocnemis expansa) está classificada como "quase ameaçada de extinção", por apresentar menor risco de ser extinta.

"Os quelônios tem um valor intrínseco, que não se mensura e nem se coloca valor. São animais importantes para o equilíbrio de sistemas aquáticos, já que eles comem de tudo, consumindo matéria orgânica morta, como peixes e restos de outros animais, além de consumirem pequenas algas e macrófitas, plantas aquáticas que flutuam sobre a água", explica o biólogo.

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Menino ribeirinho interage com espécie protegida por um projeto da ONG "SOS Amazônia" no Estado do Acre (Eliz Tessinari/SOS Amazônia)

Luiz só lamenta a perseguição aos animais. "Pessoas saem da cidade e montam caravanas de barcos para pegar a desova. O ovo é considerado uma iguaria. Fazem uma gemada com açúcar e farinha, que chamam de 'arabu', assim como ovo frito ou cozido. Na cidade, uma dúzia de ovos de tracajá chega a custar R$ 60 e a procura é alta. Mas, por outro lado, há muitas famílias engajadas na preservação, refletindo se os filhos e netos irão conhecer as espécies, com intensa participação dos professores. Isso faz girar a roda da educação ambiental de maneira orgânica e cíclica e aponta para um futuro de mais otimismo, consciência e preservação", destaca o biólogo.