20230110ATUPERFUMES - FOTOS CARMEM HELENA  (23).JPG
PERFUMES

Cheiros perfumam memórias e despertam interesse global

Plantas e raízes aromáticas amazônicas têm potencial de crescimento em um mercado que avança no Brasil, porém, oportunidades ainda esbarram na falta de investimentos, competitividade e altos custos.

Eduardo Laviano

20/01/2023

Perfumes não são apenas aromas. São também memórias e sentimentos que perduram no imaginário de quem abre o coração para senti-los. O engenheiro civil Camilo Delduque que o diga. O quintal do pai dele, em Recife, Pernambuco, era uma mistura de chão batido, goiabeiras, coqueiros, ingá e pitanga. Mesmo em Belém, no Pará, a distância do cheiro não apagou as lembranças das crianças correndo no quintal, nem do amor e dos momentos felizes vividos naquele cenário tão particular e especial. Até que um dia a filha dele, Camila, entrou em uma loja de cosméticos da capital paraense e cheirou uma amostra de um dos produtos da marca. "Na hora fui tomada pela lembrança da melhor fase da minha vida, com a melhor pessoa da minha vida. O cheiro era o mesmo. Chorei descontrolada", conta ela, lembrando-se do avô paterno.

Camilo e Camila Del Duque - 20230601ATUPERFUMES - FOTO THIAGO GOMES (7).JPG
Camila e o pai, Camilo, sentiram a mesma emoção provocada por um perfume - Foto: Thiago Gomes

Em um único frasco, Camila relata ter sentido notas olfativas de topo inspiradas em crianças brincando de bambolê. As notas de coração eram de pão doce com pipoca de arroz. E as notas de base eram da piscina natural de cimento que o avô dela construiu para a criançada fazer farra. Ela não conseguiu criar coragem de levar o perfume para casa. Nas vésperas do Natal de 2022, levou o pai até a loja, que sentiu o cheiro e logo também desabou em lágrimas. "Era um cheiro que marcava demais. Era impossível não notar. Quando a gente saía de casa, o cheiro ficava com a gente. E, além do quintal, pai e mãe sempre têm um cheiro, né? Minha mãe tinha cheiro de leite de colônia, inesquecível", lembra Camilo, um dos muitos residentes da Amazônia que cultiva relações afetivas com aromas e perfumes.

Veja o vídeo abaixo: 

São memórias que se repetem em larga escala em todo o Brasil e que tornam os insumos e produtos de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos desenvolvidos no país, e na Amazônia, objetos de desejo e de curiosidade, movimentando um mercado poderoso, sob olhares atentos do resto mundo: o setor teve um crescimento de 8,6% na corrente de comércio internacional, entre janeiro e outubro de 2022, na relação com o mesmo período do ano anterior. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos, esse percentual representa a cifra de R$6.42 bilhões.

A ancestralidade das erveiras da Amazônia

ERVEIRA_MÁRCIA DOS ANJOS FOTO_CARMEM HELENA.jpg
Márcia Cardoso trabalha como erveira, no mercado do Ver-o-Peso, em Belém - Foto: Carmem Helena

Muitos elementos do mercado brasileiro de cosméticos passam pelas mãos de mulheres empreendedoras da Amazônia. Parte indissociável do principal cartão postal de Belém, as erveiras do mercado do Ver-o-Peso acumulam conhecimentos passados de geração em geração e que constituem um laço de confiança com quem busca qualquer tipo de ajuda. Para Márcia Cardoso, ser erveira é se aprofundar nas essências e aromas e em quais mudanças cada raiz pode promover na vida de quem as usa. "As pessoas usam para abrir caminhos, trazer sorte, prosperidade, amor, bons negócios", diz ela, que avalia que o contato com as pessoas é a melhor parte do trabalho. Todas as ervas que chegam na barraca da Márcia são trazidas por “mateiros”, como são chamados os conhecedores das matas, que colhem as raízes em ilhas que cercam Belém e em outras cidades do interior. São cerca de 15 fornecedores que chegam todas as manhãs ao Ver-o-Peso com as folhas e galhos solicitados pelas vendedoras.

Os pais desses “mateiros” eram fornecedores e amigos da mãe de Márcia, Maria dos Anjos, que começou a trabalhar junto com o marido no mesmo local, a partir dos conhecimentos adquiridos com o pai dela. "Aqui é assim. Tudo de pai para filho. Eles foram morrendo e os filhos começaram a colher. Do mesmo jeito que eu passo tudo que sei para os meus filhos. Sempre tem alguém disposto a continuar nossa história", diz. Há 45 anos no mercado, ela lembra os clientes que os banhos são mais do que apenas cheirosos: são medicinais. Alguns banhos levam 17 ervas diferentes a depender da necessidade. "É só misturar tudo na quantidade certa. Depois as pessoas vêm aqui me agradecer, dizer que superaram problema de rins, colesterol, por conta das ‘garrafadas’ (como são chamadas as misturas de ervas) que passo. Fico alegre", diz.

Além dos aromas marcantes, as erveiras também se especializaram no marketing das ruas para conquistar clientes. Fora dos produtos medicinais, os nomes dos perfumes são sugestivos, com duplo sentido, e viram refúgio para quem busca um pouco mais de sorte nos relacionamentos. Tem do "Agarra homem" até o "Chora nos meus pés". Segundo a erveira Nazaré dos Santos, os turistas ficam "loucos e curiosos", comprando vários frascos para si e também para os amigos. De acordo com ela, que tem 76 anos e está há 52 na feira, o mais importante é acreditar e entender o perfume como uma dose diária de autoestima e confiança.

Cupuaçu, açaí e até copaíba são base para muitos cosméticos

Fátima Chamma_Foto_ Dafna Obadia.jpg
Fátima Chamma - Foto: Dafna Obadia

Na década de 40, o Ver-o-Peso já era o que é hoje: movimentado, repleto de comerciantes de toda sorte e permeado por aromas dos quais os paraenses são íntimos desde a infância. Foi lá que Oscar Chamma, um acreano filho de libaneses, iniciou uma jornada de misturas, fórmulas e inspirações que levaram à criação de perfumes que hoje são rotulados com a marca Chamma da Amazônia, atualmente comandada pela filha dele, Fátima. Desde a década de 90, o negócio familiar se expandiu e conquistou espaço mundo afora, com um público-alvo variado, de todas as idades e gêneros. Segundo Fátima, a Chamma traz a natureza para dentro dos lares dos paraenses por meio de cheiros que criam memórias.

"Minha produção sempre foi norteada como continuidade do trabalho do meu pai. Minha inspiração é a cultura paraense, seja popular, erudita, o que herdamos da colonização, a influência dos negros. Nosso povo gosta muito de banho e de estar cheiroso. É uma tradição do povo paraense no corpo e nos armários. E é conveniente, pois temos muita umidade, calor, mofo. Quem não cresceu vendo a mãe colocando aquele cheirinho do Pará com patchouli no guarda-roupa?", pontua.

O pai de Fátima agregava vários insumos estrangeiros nas fórmulas que produzia. Hoje, a Chamma da Amazônia tem 100% de foco nas raízes e frutas da Amazônia e vai além dos perfumes: a empresa produz hidratantes corporais de açaí, cupuaçu e castanha do Pará, bem como máscaras faciais de buriti e xampus de copaíba. Aliás, foi na copaíba que Fátima encontrou solução caseira para que os aromas dos produtos tenham maior durabilidade no corpo dos clientes. "É um excelente fixador natural de cheiros, assim como o breu branco. À primeira vista, parecem elementos incomuns para produtos aromáticos, mas, nas misturas, dá certo. A copaíba é muito poderosa e também medicinal", conta.

Apaixonada pela priprioca desde criança, Fátima advoga que os perfumes carregam as individualidades de cada ser humano de maneira particular e única. Isso é porque cada um deles se modifica ao entrar em contato com cada pele e, portanto, nunca é igual a outro. Além disso, ela acredita que é uma maneira de interagir e incluir amazônidas na economia global. "Há comunidades locais que plantam as raízes de onde se extraem os óleos, especialmente no município de Acará (Pará). E temos muitas outras que trabalham com óleos naturais, como andiroba, copaíba, pracaxi, côco. É um trabalho em conjunto", diz.

Nem tudo são flores perfumadas: a empresária conta que há dificuldades a serem superadas, como as questões logísticas. Ela lembra que 90% dos insumos são de fora, como embalagens, vidro, matérias primas, tampas e álcool. Há poucas opções de transporte diário para algumas cidades do Brasil e nem todas as transportadoras são autorizadas a carregar álcool. Nada disso abala Fátima. "É uma experiência de muitos aprendizados e conquistas, mas também de muitas derrotas, que te trazem mais resiliência e vontade. O Pará tem potencial de ser líder em produtos verdes sem depredar nada. Mas precisamos melhorar a competitividade e superar os altos custos para conquistar o mercado externo e também o mercado local”, afirma.

Pesquisa é aliada na preservação de árvore cobiçada pelo mercado

Lauro Barata_Foto_ Divulgação Ufopa.jfif
Professor Lauro Barata - Foto: Divulgação/Ufopa

Diante de tanta diversidade em uma floresta tão grande e densa como a amazônica, fica ainda mais importante o trabalho de catalogar e preservar as raízes aromáticas da região, além de pesquisar como elas podem beneficiar o dia a dia de quem as usa. E essa tem sido a vida de Lauro Barata, professor visitante da Universidade Federal do Oeste do Pará, no município de Santarém.

Após acumular décadas de experiência na área de química de produtos naturais, em 2000 ele foi chamado pela grife francesa Chanel para produzir um relatório sobre o pau rosa, uma árvore nativa da Amazônia que até hoje está incluída pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) na lista de espécies em perigo de extinção e, até então, era usada na fórmula do perfume Chanel N°5. Foi nesta época que Barata passou a se aprofundar ainda mais sobre como utilizar as raízes sem prejuízos para o meio ambiente.

Em 2011, Barata e um grupo de pesquisadores foram a Brasília pedir que a derrubada da árvore do pau rosa se tornasse ilegal. Desde então, ele  coordena um grupo interdisciplinar de aproximadamente 25 pesquisadores de áreas como farmacologia, botânica, biologia e química. Juntos, eles ajudaram empresas locais a desenvolverem técnicas sustentáveis de extração do óleo de raízes aromáticas, com foco no pau rosa.

"Derrubaram quase todas as árvores de pau rosa do Pará e Amapá, ainda nos anos 50. Hoje, temos no leste do Amazonas e também nas proximidades de Oriximiná e Juruti (Pará). Entrou em perigo de extinção e houve uma comoção internacional na virada do século. Mas nosso trabalho provou que era possível extrair o óleo essencial das folhas e galhos, sem derrubar. E fomos fazendo isso, com responsabilidade e muita pesquisa. Dizem que dinheiro não dá em árvore. Mas dá sim. Um litro de pau rosa chega a 400 dólares. De priprioca, 500. Isso é trabalho e renda para os povos da floresta, que se especializam cada dia mais nas práticas sustentáveis", diz ele.

Óleo de pau rosa_Foto_ Susan-Gerber Barata.jpg
O óleo de pau rosa por ser extraído das folhas e galhos, sem a necessidade de derrubar a árvore - Foto: Susan-Gerber Barata

Hoje, a derrubada ainda é considerada ilegal, porém, cinco empresas possuem autorização do Ibama para exploração de pau rosa, todas no estado do Amazonas. O professor conta que apenas duas delas estão em atividade: a Magaldi, com mais de meio século na ativa, e a Kaap, existente há um ano e fundada por um ex-aluno de Barata. Ambas realizam o cultivo utilizando sistemas agroflorestais, onde o plantio do pau rosa é desenvolvido junto com o de outras raízes, como a copaíba, andiroba e abacaxi, tornando o pau rosa mais resistente e pronto para a extração do óleo em menos de cinco anos. A produção chega a três mil quilos anuais de óleo, no caso da primeira, e mil quilos no caso da segunda, que são comercializados para empresas nacionais e internacionais. As empresas cultivam a árvore e extraem o óleo somente das folhas e galhos, conforme os ensinamentos repassados por Lauro Barata.

A tradição milenar do “semear, cuidar e colher” para não faltar

Mais do que pesquisar a composição química de cada planta, Barata desenvolveu um olhar apurado para observar as relações dos amazônidas com cada raíz. Segundo ele, todos os aromas que são vendidos embalados nas perfumarias são resultado de um sistema milenar que envolve semear, cuidar e colher. São tradições de origem indígena e que foram passadas de pai para filho, permeadas por funções medicinais e curativas, mas também por mitos e lendas.

"Veja a tradição do banho de cheiro. É exatamente fruto desse conhecimento milenar que mistura raiz de priprioca com favas de cumaru no alguidar com água. É mais que um banho: constitui a história de um povo e também um folclore único, que permanece no espírito da população ao passar das décadas”, aponta o pesquisador.

Mercado - Na opinião de Lauro, a importância que os aromas amazônicos têm na vida de quem vive na região estabelece um paradoxo com o quão pequeno é o mercado de cosméticos nos estados do Norte do Brasil, onde está a maior parte da Amazônia Legal: são apenas 66 empresas, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos. Dezenove delas no Pará, de acordo com  Sindicato das Indústrias de Produtos Químicos, Petroquímicos, Farmacêuticos e de Perfumaria e Artigos de Toucador do Estado do Pará. Lauro estima que há mais de 350 plantas aromáticas detalhadamente catalogadas na Amazônia. Segundo o professor, é preciso que os governos criem linhas de financiamento para o ramo, com técnicos especialistas na cadeia de produção e também em exportação, já que boa parte do interesse pelas plantas locais parte de empresas estrangeiras.

"Hoje nós mostramos para as empresas sobre o plantio adequado, o reflorestamento, tudo passo a passo. Com os mesmos equipamentos, hoje, extraímos tanto óleo da priprioca quanto pau rosa, bem como óleos de catinga de mulata e alguns tipos de manjericão. É uma diversidade enorme e com funções para além da perfumaria. É preciso apoiar quem planta e colhe, quem transforma em óleo e quem produz os cosméticos. São funções diferentes com especificidades próprias. Temos potencial para lidar com este movimento, mas o Pará e a Amazônia ainda estão muito atrasados. Gente capacitada é o que não falta", finaliza.