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OPINIÃO

Açaizais, açaização e os desafios da sociobioeconomia

Agrônoma (UFRA), PhD em Ecologia (Stirling- UK). Pesquisadora titular e ex-diretora do Museu Goeldi. Membro da Academia Brasileira de Ciências-ABC. Foi perita no Sínodo para a Amazônia a convite do Papa Francisco.

Ima Vieira

29/06/2023

Atualmente, onde quer que você ande tem açaí. Todos os estados brasileiros e cerca de 70 países consomem açaí, mas não da mesma forma que os amazônidas: com peixe frito, camarão, charque e farinha d’água. Mix açucarados e sorbets dominam o mercado com seus produtos “açaizados”, cheios de banana, granola e leite ninho. Mudanças culturais como essas estão associadas a transformações econômicas e ecológicas, tendo como palco principal a vida ribeirinha e as florestas de várzea do estuário da Amazônia.

Os registros arqueológicos e os relatos de viagem dos naturalistas dos séculos XVIII e XIX, mostram que o açaí vem sendo manejado ao longo das várzeas amazônicas há séculos. A paisagem ribeirinha e esta espécie, descrita como Euterpe oleracea Mart em 1824, que povoam a literatura imaginária de Julio Verne (A Jangada, 1881) e as pinturas impressionistas de Paul Gauguin, vêm passando por grandes transformações, tendo como base o manejo da floresta de várzea, apoiada em técnicas locais que resultaram na formação dos açaizais e, posteriormente, no processo de açaização, a intensificação do manejo dos açaizais que levou ao domínio dessa palmeira na paisagem.

A partir da década de 80, estudos de Antonhy Anderson, e outros colegas do Museu Goeldi, sobre o manejo das florestas de várzea ribeirinhas ajudaram a formar a ideia de que os povos da floresta manejavam suas áreas diversificando e garantindo a conservação e a sustentabilidade socioambiental, e isso teve grande influência na criação das reservas extrativistas em toda a região. Ainda nesta época, formou-se a atual economia regional do açaí, com a expansão da produção de frutos, como resposta à crescente demanda do açaí nos centros urbanos da região.

Mas foi em meados da década de 1990 que o açaí passou a abastecer os mercados nacionais e internacionais e a produção passou a atender à lógica da monocultura. Já nos anos 2000, o pesquisador visitante do Museu Goeldi, Mario Hiraoka, havia observado o processo de açaização da paisagem e questionado sobre a sustentabilidade da exploração dos frutos de açaí, o que foi notado logo depois por outros pesquisadores como Stephanie Weinstein, Alfredo Homma, Eduardo Brondízio, dentre outros.

O que nossos estudos recentes têm evidenciado é que o manejo intensivo em densidade muito elevada do açaizeiro (mais de 400 touceiras/ha), de fato, tem alterado substancialmente as florestas de várzea, tanto taxonômica como funcionalmente, e não sustentam mais uma diversidade de plantas e animais capazes de garantir os processos ecológicos necessários para a sua manutenção. E isso tem consequências para a perda de biodiversidade e impacto nos serviços ecossistêmicos providos pelas florestas de várzea, e também para a produção de frutos, pois a polinização das flores do açaí é altamente dependente do serviço prestado pelos insetos.

A expansão da economia do açaí a partir da escala local para a global e de um alimento básico para um superalimento, o transformou em uma espécie globalizada, explorada em sistemas de baixa sustentabilidade ecológica. A ampliação do mercado sem dúvida, contribui para a geração de renda das famílias ribeirinhas, mas até quando? É necessário refletir: de que forma o uso e a comercialização em larga escala do açaí podem incentivar a preservação da floresta nativa e se tornar um símbolo do seu uso sustentável?

Escutar a ciência é o caminho. Há muito o Dr Francisco de Assis Costa demonstra  a necessidade de combater o avanço das trajetórias produtivas de padrão homogeneizador e garantir uma estratégia de desenvolvimento para a Amazônia que leve em consideração os sistemas econômicos locais e os interesses das populações regionais. E, neste sentido, no caso do açaí, consideremos incorporar o manejo de baixo impacto, como o preconizado pela Embrapa, nas políticas públicas de apoio a sociobioeconomia ribeirinha, tornando esta cadeia produtiva ecologicamente sustentável.