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Eleições 2022

Eleitores à margem dos meios modernos de informação

Comunidades isoladas na Amazônia brasileira não são visitadas por boa parte dos candidatos. Para muitas, informação chega apenas pelos canais tradicionais, como rádio e TVs com sinal de parabólicas, ou via conversas com lideranças comunitárias

Alice Martins | Dilson Pimentel

10/09/2022

Em outubro deste ano, o Brasil realizará as eleições para presidente da República, governadores, senadores e deputados federais e estaduais. Desde 1996, o processo eleitoral é informatizado no Brasil, contando com uso de urnas eletrônicas e satélites, dentre outros equipamentos, e garante maior agilidade e transparência, com a apuração do resultado sendo feita em poucas horas.

Na região amazônica, apesar da automação e avanço tecnológico do processo eleitoral, ainda existem muitas comunidades com pouco, ou nenhum, acesso à internet. Por isso, os moradores dos grandes centros urbanos têm mais acesso à informação e, consequentemente, mais possibilidades na hora de escolher em quem votar. Nesse cenário, quais são as estratégias adotadas pela população de áreas distantes das capitais, para se informar sobre o processo eleitoral?

No Maranhão, um dos nove estados da Amazônia Legal,  o isolamento geográfico contribui para obstáculos na comunicação, segundo Reinaldo Avelar, secretário geral da Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão (Aconeruq). Algumas das comunidades remotas, entre elas quilombos, estão localizadas em 11 ilhas ao longo dos 640 quilômetros da costa, de acordo com o TSE, como as comunidades quilombolas de Cantinho e Santo Antônio, no município de Barreirinhas. Outras, fora das ilhas, também são de difícil acesso em razão das precárias condições das estradas que estão no percurso.

“A comunidade se informa para as eleições mais pelo rádio e pelas conversas com os conhecidos, porque não só o acesso à internet é difícil, mas como muitos utilizam a televisão com antena parabólica, que só transmite a programação nacional. Então, muitos ficam sem saber quais são os candidatos locais”, conta o Secretário da Aconeruq.

Além disso, segundo a liderança, as dificuldades de locomoção para chegar às comunidades faz com que poucos candidatos tenham condições de ir presencialmente se apresentar para os eleitores dos quilombos. “Muitas vezes, os únicos candidatos que vão são aqueles que têm uma lancha boa, um carro com tração 4x4, então a comunidade tem uma visão limitada das opções de candidatos em que podem votar”, explica.

Já na aldeia indígena Wai-Wai, no oeste do Pará, existe acesso à internet, mas as reuniões da comunidade ainda cumprem um papel importante na troca de informações durante o período eleitoral. É o que diz Rodrigo Nascimento, 43 anos, um dos indígenas da aldeia, que fica a mais de 24h de distância, pelos rios, do município mais próximo, Oriximiná. “Os mais jovens, principalmente, se informam sobre os candidatos pela internet. Muitos já foram morar fora da aldeia para estudar, por exemplo, e têm um contato mais fácil com a cidade. Mas algumas pessoas, como os idosos, ainda dependem das informações que os articuladores da comunidade trazem. É comum fazer grandes reuniões para discutir esses assuntos”, revela, referindo-se aos próprios indígenas que têm mais contato com a cidade, que atuam como articulares dentro da aldeia.

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Francisco Lima se informa sobre as eleições pela TV ou por conversas na comunidade ribeirinha onde ele vive, no Pará - Foto: Tarso Sarraf

Deslocamento até as seções é feito pelos rios

Na Ilha do Marajó, arquipélago do estado do Pará, as distâncias geográficas também impactam na participação da vida eleitoral. Boa parte da população é ribeirinha e precisa se deslocar de barco para as seções eleitorais mais próximas. De Belém, a capital do estado, para Breves, a viagem de navio dura em torno de 12 horas. De Breves para Melgaço, leva-se uma hora de voadeira (um tipo de embarcação pequena, movida a motor); e de Melgaço para Portel, a viagem leva em torno de 30 minutos, de voadeira. Essa distância aumenta dependendo de como estão localizadas as comunidades ribeirinhas de Melgaço.

Na Vila Jerusalém, às margens do rio Tajapuruzinho, em uma comunidade ribeirinha de Melgaço, a reportagem encontrou o senhor Francisco Queiroz de Lima, de 66 anos, nos altos da casa de madeira. O acesso a essa e às demais casas da comunidade é por palafitas, que são passarelas de madeira. As palafitas são as calçadas. Seu Francisco fazia, de forma artesanal, uma malhadeira, que é um tipo de rede usada para a pesca. Há quase 10 anos morando na comunidade, ele contou como se informa sobre os candidatos. “É pela televisão, pelo jornal”, disse. Ele contou que fica analisando “quem presta, quem já trabalhou, quem roubou, quem não roubou”.

Na hora de escolher os candidatos a prefeito e governador, ele disse que conversa com outras pessoas e faz essa pesquisa. “Onde a gente vê a 'falança' maior (mais comentários), ‘aquele um’ é que vai ser eleito”, contou.

Seu Francisco vota em Melgaço. Ele vai de rabeta, que é uma canoa movida a motor. “Ainda não pesquisei, mas acho que dá meia hora. É rápido”, diz ele sobre a distância entre a comunidade onde mora e a sede do município. Ali perto, a reportagem também encontrou Silva Serliane da Pereira, 26 anos, que lavava roupas às margens do rio. Ao ser perguntada sobre a sua profissão, respondeu: “Olha, minha profissão é só trabalhar em casa mesmo. Aqui não tem trabalho pra gente. Só a profissão de casa mesmo”, contou. Sobre a forma como escolhe os candidatos, disse que é pelas ‘reportagens da televisão'. As coisas aqui na comunidade são mais difíceis. É raro vir um político aqui para conversar com a gente, vim em casa, ver as propostas”, contou.

Serliane vota em Melgaço, viajando na embarcação mais comum na região. “Quando a rabeta navega bem, não leva uma hora. Mas, quando é de barco, uma hora e meia. É mais difícil”, disse ela.

Henrique Gonçalves da Cunha, de 67 anos, é aposentado. Mas, para aumentar o orçamento doméstico, vende picolé na orla de Portel. De lá, pode-se observar a beleza do rio, realçada por uma manhã de sol forte, e o fluxo intenso de embarcações.

Ele também disse como escolhe seus candidatos. “Observando as coisas que a gente vê que é bom pra população, pra nós. Na área da saúde, segurança. E muitas coisas que a gente observa aqui na região”, disse. Há 10 anos ele mora na cidade. Antes, contou, residia no “interior” de Portel – ou seja, na zona rural.

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Serliane Pereira vive em uma comunidade ribeirinha em Melgaço, no Pará. A viagem até o local de votação pode levar até uma hora e meia - Foto: Tarso Sarraf

Aeronaves, embarcações e até tração animal para chegar a áreas remotas

O Pará é o segundo maior da Amazônia Brasileira e do país, como um todo. Dos 6 milhões de eleitores residentes ali, mais de 1,3 milhão estão em comunidades que dependem de deslocamento especial da logística eleitoral no Pará. São 938 mil eleitores que vivem em zonas rurais, 370 mil eleitores que vivem em regiões ribeirinhas, 10 mil eleitores em territórios indígenas e pouco mais de 23 mil eleitores de comunidades quilombolas, conforme informa o diretor-geral do Tribunal Regional do Pará (TRE-PA), Felipe Brito.

Por isso, o TRE-PA contratou, neste ano, seis aviões, quatro helicópteros, 616 embarcações e quase 3 mil veículos terrestres dos mais variados tipos, para chegar até essas populações. “[Utilizamos] desde grandes caminhões e ônibus até pequenas motos, rabetas e carros de mãos. Algumas vezes, até veículos traçados, em transporte animal, que é o caso mais difícil de se chegar, em regiões que estão passando por seca, o que é comum nas regiões do Oeste do estado nesse período”, descreve.

Segundo o diretor-geral, a atuação do Tribunal Regional Eleitoral para garantir o voto a essas comunidades remotas iniciou ainda em janeiro, quando equipes foram às localidades para promover a emissão de inscrições e regularidades eleitorais. Antes mesmo de levar as urnas para as localidades, outros preparativos são tomados: “Como muitas localidades não possuem energia elétrica, as próprias urnas eletrônicas têm uma autonomia que aguentam praticamente toda a votação, mas, ainda assim, o TRE distribui baterias adicionais para que não haja nenhum tipo de interrupção na votação”, complementa Felipe Brito.

O procedimento informatizado garante segurança e transparência ao processo eleitoral, eliminando a intervenção humana na apuração e totalização dos resultados. E, mesmo com falta de internet e energia em algumas comunidades, a eleição em urna eletrônica consegue fluir e ter os dados integrados e protegidos por todo o país, garantindo ainda rapidez na apuração dos votos.

Com uso de satélites, a transmissão de resultados acontece praticamente de forma simultânea ao encerramento dos trabalhos na seção eleitoral. “Isso é feito em qualquer localidade, independente de possuir  energia elétrica ou não”, ressalta o diretor-geral. Informações do TSE, inclusive, apontam que “antes da utilização desse sistema, a Justiça Eleitoral demorava mais de 48 horas para finalizar as eleições. Com os satélites, o resultado passou a ser divulgado no mesmo dia do pleito. Atualmente, a transmissão dos votos nesses locais dura aproximadamente três minutos”.

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Mais de 1,3 milhão de pessoas estão em comunidades que dependem de deslocamento especial da logística eleitoral no Pará - Foto: Tarso Sarraf


 

Indígenas ajudam na instalação e funcionamento de seções

Rodrigo Nascimento, indígena da etnia Wai-Wai, comenta que, para chegar na sua aldeia, é preciso enfrentar uma longa viagem. Partindo do município mais próximo, Oriximiná (estado do Pará), são 16 horas de barco, enfrentando fortes correntezas, seguidas de mais 14 horas de voadeira, um tipo de embarcação rápida muito utilizada na região. “Ali, só consegue chegar quem conhece o percurso do rio, ou seja, só os moradores das comunidades daquela região”, diz. “Antes de ter essas embarcações mais rápidas, era muito mais demorado, eu lembro que muitas vezes fui de canoa, remando, com meu pai, por uma semana, parando onde dava, até chegar a Oriximiná”, lembra.

Esse é o percurso que precisa ser percorrido para instalar ali uma seção eleitoral, como será feito neste ano, devido às eleições. O apoio das lideranças nesse momento é fundamental e, para Rodrigo, é uma forma de exercer a cidadania. “Nós lutamos por nossos direitos todos os dias e garantir o acesso ao voto é um deles. Então, é muito importante estarmos envolvidos em todo o processo eleitoral”, afirma. Segundo ele, muitos indígenas atuam como mesários e fiscais eleitorais no dia das eleições, além de serem tradutores da língua Wai-Wai para a língua portuguesa, e vice-e-versa.

No dia de votação, de acordo com Rodrigo, a equipe do Tribunal Regional Eleitoral chega pelos rios, guiada por um indígena, e, geralmente, é acompanhada por uma equipe do Exército, que vem de helicóptero ou avião. “Algumas vezes, vêm também representantes da Funai (Fundação Nacional do Índio). Eles chegam e montam uma seção na maior aldeia que tem próximo, que é Mapuera, e nós, Wai-Wai, vamos para lá votar, junto a outras aldeias e também da comunidade quilombola Cachoeira Porteira”, descreve.

Quilombolas também são fundamentais para guiar equipes

Nos quilombos do Maranhão, garantir o direito ao voto a todos é desafiador. “Nas comunidades que estão em ilhas, precisamos fazer uma grande mobilização para deslocar as pessoas e equipamentos para as eleições, usando canoas, por exemplo”, explica Reinaldo Avelar, Secretário Geral da Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão (Aconeruq).

Com 58 anos, Reinaldo é da comunidade Damásio, do município de Guimarães (MA), e recorda que as dificuldades antigamente eram ainda maiores. “Mesmo com todos os desafios de agora, ter seções dentro dos nossos territórios quilombolas é uma conquista muito grande. Antes, tinha gente que deixava de votar. Muitos só conseguiam ir até a cidade mais próxima votar se fosse pegando ‘carona’ com algum político e isso comprometia totalmente a autonomia de escolha do voto”, contextualiza.

É por isso que, segundo ele, as lideranças fazem questão de estar junto ao Tribunal Regional Eleitoral, envolvidas com o processo eleitoral. “Não queremos ficar de fora da tomada de decisões. Além de tudo, os quilombolas servem de guia para levar as equipes do Tribunal para as comunidades e muitos de nós atuam como mesários. Isso faz muita diferença, porque gera mais representatividade e incentiva as comunidades a se engajarem, buscarem saber mais de como funciona o processo eleitoral e fazerem um voto consciente”, acredita.

A reportagem do Liberal Amazon entrou em contato com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), buscando agendar entrevista ou dados atualizados de comunidades de difícil acesso na Amazônia. Porém, até o fechamento desta edição, não recebeu retorno.